domingo, 31 de agosto de 2008

RESPOSTAS E REFLEXÕES

Los Arcos - Igreja de Santa Maria

Hoje vou começar respondendo algumas “perguntas que não querem calar”, não é Tell e cia?

1 - Tudo aqui narrado fez parte do meu Caminho, do que passei, não é liberdade poética, embora em algumas ocasiões bem que eu gostaria que fosse!

2 – A Cris fala, literalmente, com todos os animais, e eles respondem, só não descobri ainda se ela compreende o que eles respondem, mas tenho uma séria intuição que sim!

3 – O romano me empurrou porque os romanos são sacanas mesmo! Vá a Roma e descobrirá que é verdade o que eu digo. Só não sabia, naquela época, que romano desencarnado também sacaneia... vai ver eu era cristã... e como não tem mais leão, resolveram me jogar pirambeira abaixo.

4 – O Mauricio não é coitadinho coisa nenhuma, tá! Está certo, adoro ele, mas ele vendia caro o uso do travesseiro e do creme, até cuecas e meias tive que lavar (e diz a Cris que lavo roupa pior que homem - rs)!

5 – Contrariando as normas, nós ficamos com peninha dele e jogamos fora a água de um cantil e levamos um pouquinho de vinho para ele... que perdeu mesmo o caminho da fonte... Mas foi castigo, ele já estava pensando em nos abandonar, por isso ficou para trás. Mas a Justiça Divina não falha! Ele chegou a Los Arcos antes da gente, quando chegamos já tinha até lavado roupa! (essa noite não teve como dormir de travesseiro – rs)
REFLEXÕES

Era 23 de maio de 2000. Foi neste dia, em Los Arcos, que eu parei para pensar sobre uma das lições do Caminho. Sobre a transitoriedade das pessoas em nossas vidas. Como disse, tenho algumas anotações que fiz nas beiras do guia, são palavras chaves e é só lê-las que tudo volta instantaneamente...
Quando eu fui para a Espanha, estava saindo de uma crise muito intensa, minha cabeça era um turbilhão só, eu precisava de um tempo para me reencontrar, para descobrir, depois de tudo que havia passado: perdas, escolhas, renúncias, doença, etc. o que havia sobrado da Kátia que eu conhecia. Se ainda existia, ou se era outra, e se era, precisava conhecer essa outra na qual havia me transformado. Se era melhor ou pior, ou apenas diferente...
Lembrei-me da minha filha, que no auge do meu sofrimento, da minha doença, me disse que nunca mais eu seria a mesma, pois se partisse iria incompleta, pois deixava minha família para trás, e se ficasse, não ficava inteira, pois abriria mão do meu sonho. Então, modificada para sempre estaria.
Pensando assim cheguei à conclusão, não sem sofrimento, que não podemos reter as pessoas em nosso Caminho a menos que elas queiram caminhar o mesmo caminho que nós, e nem sempre isso é possível ou fácil.
Quantas pessoas trilham juntos caminhos distintos!
Cada um tem o seu caminho e quando mais cedo aceitamos isso, menos sofremos. Um dos meus grandes erros, durante a vida, foi crer que poderia deter o tempo, detendo as pessoas na minha vida. Mas não tem como deter nada nem ninguém.
A vida passa rápido demais e as pessoas se vão rápido demais e acaba ficando, quando não se sabe lidar com isso (o meu caso) um vazio muito grande.
Não tem como preencher o vazio deixado pelas pessoas, eu precisava aprender a preencher meus vazios com o que existe dentro de mim, só assim aprenderia a viver mais feliz.
Parece que a dor é uma companheira constante e inseparável, e eu precisava aprender a viver sem ela. E naquele momento estava sendo muito difícil. Foi tanto tempo alimentando dores diversas que eu já não sabia mais viver sem elas.
Eu substituía minhas dores, do corpo e da alma, por outras e ficava a me perguntar se algum dia seria feliz por mim mesma.
Naquele momento só tinha questões, mas já tinha dado um grande passo, pois já conseguia enfrentar essas questões de frente.
A gente carrega as coisas tempo demais, sejam dores, amores não resolvidos, perdas, desafetos, raiva e acaba não sabendo viver sem elas.
Naquele momento eu tive consciência que precisava aprender, aos poucos, descartar o peso morto que carregava, no Caminho como na Vida.


quinta-feira, 28 de agosto de 2008

ESTELLA – LOS ARCOS

Estella

Estella - Convento de Santo Domingo

Chegamos a Estella (eu aos trancos e barrancos). Tivemos que esperar do lado de fora, numa fila, pois o albergue só abria tipo 15 horas. Mas a recepção calorosa dos hospitaleiros Carlos e Maria Cruz, atenciosos, sorridentes, solícitos, foi algo tão diferente e inesperado, que todo o cansaço se esvaiu. Para completar ainda encontrei uma médica, Lourdes, que cuidou das minhas bolhas, cortou as peles mortas, fez curativo, fantástico! Albergue 5 estrelas! Tem até espaço com cama para massagem!

Estella - Albergue


Bem, não é por eu ter feito trilha, o Caminho, que deixei de ser urbana. Isso ficava cada vez mais evidente quando eu chegava numa cidade. Podia estar morta, mas era só tomar um banho que estava prontinha para ir para a rua.
O Carlos até brincou com a gente dizendo que reconhecia as brasileiras depois do banho, pois ao chegar todos chegam estafados, mas as brasileiras não dispensam um batom e um passeio! Verdade! Deixei muita coisa no meio do caminho, mas meu batom e meu lápis de sobrancelha, nem morta!
Depois de socorrida saímos para um passeio.
Estella surgiu em 1090, em função do Caminho, como povoado de estrangeiros (artesãos e comerciantes) para atender aos peregrinos, que, a cada dia, aumentavam. Povinho esperto! Seguem fiéis à tradição. É considerada, ainda hoje, uma das cidades que melhor atendem aos peregrinos, além de possuir construções, igrejas, parques belíssimos.
O interessante foi que os beliches do albergue eram de casal! Ou seja, tínhamos que dormir dois a dois (rs), apesar de ter bastante espaço entre um colchão e outro, e tinha até roupa de cama. A Cris quase matou o povo de rir fazendo malabarismos para subir e dizendo pertencer ao Cirque du Soleil!
Parêntesis 1: Quando eu fui me desfazendo das coisas que pesavam, eu dei meu travesseiro e o creme hidratante para o Mauricio, acontece que toda vez que eu me sentia triste, machucada, ele me deixava dormir com o travesseiro... ou seja, Mauricio, além de anjo da guarda, passou a carregar um pouco do meu fardo também. Nem precisa dizer que eu usava o creme quase todos os dias e dormia de travesseiro também (rs)!
Novamente encontramos com a Maria do Carmo, Osmar e Ademir, mas como eles chegaram tarde, dormiram em colchões no chão. Foi uma ótima noite, apesar dos romanos!
Mas como tudo tem um depois... a manhã seguinte foi barra! Doía tudo! Levantar foi um sacrifício! Porém o percurso até Los Arcos era considerado fácil, só 21,3 km (eu já estava rindo das distâncias). O Mauricio ficou fazendo hora e eu e a Cris saímos na frente.

Monastério de Irache

Eu sabia que naquele dia passaríamos pela famosa Fuente del Vino. Avisei ao Mauricio para prestar atenção. E fomos nós... tínhamos certeza que ele logo nos alcançaria.
Passamos por Ayequi e é aí que mora o perigo. Na saída deste pequeno povoado existem duas opções de trilha, uma passa pela fonte, a outra leva direto a Azqueta. A macaca velha aqui tinha estudado direitinho e pegamos a trilha da esquerda. Logo avistamos o Monastério de Irache e chegamos à Fonte.
É muito linda e interessante. De um lado tem uma torneira que sai água e do outro uma que sai vinho, e vinho bom! Eles só pedem para que bebamos o que quisermos, mas que não levemos, pois é para servir a todos os peregrinos. Pegamos nossas videiras (grandes conchas) e começamos a tomar vinho. Devia ser umas 9 da manhã... mas como eu sentia muita dor pensei, vou tomar vinho que a dor passa.


Resolvemos esperar pelo Mauricio... e nada. E mais vinho... e Mauricio? Nem sombra! Quando cansamos de esperar e estávamos repletas de vinho, resolvemos deixar um bilhete para ele, ainda colhemos uma papoula e deixamos junto e seguimos viagem. Assim, meio ziguezagueando...

Irache - Fuente del Vino

Tínhamos andado um pouco quando “topamos” com o Osmar fazendo o caminho inverso. É claro que chamou nossa atenção e perguntamos o que tinha acontecido. Ele, muito p... da vida disse que tinha tomado o caminho errado e ido parar em Azqueta. Daí resolveu voltar até a fonte (mais ou menos 4 km) porque ele ia ficar com mais raiva ainda se não voltasse. Como já estávamos alegres mesmo, rimos bastante e imaginamos que o mesmo deveria ter ocorrido com o Mauricio.

Azqueta - Maria do Carmo, Eu, Pablito, Cristina, Ademir e Osmar


Chegando a Azqueta, logo nas primeiras casas, está a humilde casa de Pablito “el de las varas”. Ele nasceu naquela casa, ali viveu toda sua vida, sempre ajudando aos peregrinos que passam, que necessitam de um cajado, de um “dedo de prosa”, um café quentinho. Figura lendária do Caminho, Pablito se ofendeu quando Maria do Carmo tirou da carteira uma nota de R$1 para dar-lhe, ele achou que ela estava pagando pelo cajado, daí eu expliquei que era moeda de pouco valor, que era uma lembrança. Ele tem um carimbo próprio para imprimir seu selo às credenciais. Depois da foto, seguimos adiante por um longo trecho de trigais, sol a pino, nem uma arvorezinha...

Caminho Villamayor de Monjardin - Los Arcos

Até que chegamos num lugarzinho com uma sombra, um riacho, pedras (diz a Cris que foi o Anjo dela que providenciou, e eu acredito), sentamos, tiramos os sapatos, mergulhamos os pés na água, descansamos... mas a Cris estava preocupada porque algumas de suas unhas dos pés pareciam estranhas.
Chegamos cedo a Los Arcos. A primeira coisa que nos chamou atenção foi a quantidade de botas do lado de fora do albergue.
O albergue era cuidado por um casal de belgas (Tony e Cristina) que determinavam que lugar de botas e chulé fosse do lado de fora. Fiquei fã deles!

Mauricio e as botas - Los Arcos


Voltamos a encontrar o Mauricio e também a Helenice. O albergue era dividido em pequenos quartos com dois beliches cada, então ficamos os quatro.
A igreja é belíssima, toda em ouro (muito provavelmente do Brasil) e as pessoas fazem questão de mostrar todos os detalhes aos turistas.

Igreja de Santa Maria (Séc. XV) - Los Arcos


Mauricio se prontificou a cuidar dos meus pés e Cris e Helenice saíram para fazer nossas compras para a noite e dia seguinte.
Parêntesis 2: Tanto eu quanto a Cris tínhamos levado vestidos de liganete (não riam, era moda!), então, quando a cidade era melhorzinha a gente colocava nossas Havaianas e os tais vestidos. A Cris estava com o dela. Não tinha dado 5 minutos e de repente vejo a Cris entrando esbaforida no albergue.
- Que aconteceu? Pergunto,
- Os homens parecem que nunca viram uma mulher de vestido, parece que vão me comer, quero minha roupa de peregrina...
Mudou de roupa e saiu outra vez.
Do lado de fora do albergue tinha umas mesas, com bancos e todos nos sentamos para lanchar. Um grupo de senhores austríacos, suíços e franceses nos convidaram a sentar com eles. E toma vinho daqui, vinho dali. Só um deles entendia espanhol, daí era tradução simultânea. Lá pelas tantas, começaram a falar de cerveja e a se entenderem na linguagem dos “borrachos”.
Mauricio ficou tomando vinho e possuído pelo Espírito Santo, falando em línguas estranhas.
Eu e a Cris fomos dormir.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

ROMANOS! QUERO DISTÂNCIA!


Trilha Puente La reina - Mañeru



Vocês lembram quando eu narrei minha visita à Roma? Eu disse que não havia gostado, que havia sida maltratada, etc. (vide http://katiamultiplasfaces.blogspot.com/2007/10/impresses-de-viagem-iv.html). Eu não me lembrava, mas minha diferença com os romanos vem de outras encarnações, agora tenho certeza!
Mas vamos à história. Saímos de Puente La Reina ainda escuro, apesar de constar no guia que a trilha era fácil (uma botinha- rs) eram mais de 22 km., meu pé já tinha bolhas, o joelho doía, mas seguimos em frente.
Como eu havia estudado todas as cidades que passaríamos, sabia que haviam algumas com monumentos e igrejas bem interessantes e nós queríamos ver. Havia, também, neste trajeto, as ruínas da antiga calçada romana com sua ponte medieval, último vestígio da antiga Rota Imperial que se transformaria no Caminho como conhecemos hoje e que data do século X, aproximadamente.
Passamos por Mañeru, pequeno povoado que foi uma antiga estação de monges hospitaleiros e que ainda conserva vestígios de uma igreja gótica.
Passamos por um animal amarrado (não sei se burro, jumento, cavalo, santa ignorância!) e a “Santa Cristina de Assis” insistia em desamarrar o animal, o Mauricio brigava que ela não tinha que se meter e eu assistia... Ao final o Mauricio venceu.
Tudo corria bem até chegarmos à tal calçada.
A trilha vai afinando e só dá para passar uma pessoa. Lembro que a Cris foi à frente. É uma descida, tortuosa. Eu fiquei no meio. Quando comecei a descer, juro! Um romano me empurrou, eu despenquei de lá de cima, saí rolando trilha abaixo, e por mais que eu tentasse me segurar, não dava! Fui parar no final da descida. Que nem tartaruga de casco para baixo, com braços e pernas para cima. Só ouvia os gritos do Mauricio e da Cris: Não se mexa! Fique parada!
Como se eu pudesse mexer alguma coisa. Só os olhos, de dor!
O Mauricio voou morro abaixo.

Maldita Calçada Romana - A seta indica, mais ou menos, de onde eu despenquei e fui parar na última moita de capim!

A Cris gritava: quebrou? Quebrou?
Eu sabia lá se tinha quebrado! Eles começaram pelos meus pés.
Narrando hoje, dá vontade de rir só de lembrar a cena: Eu estatalada no chão, mochila nas costas, pernas pra cima, e eles, cada qual de um lado, tirando bota, examinando tornozelo, perna, tudo sujo de terra, ralado, sangrando... e eu chorando.
Eis que do nada me aparece o “Bom Samaritano! Um homem muito estranho, branquelo, lembro que ele tinha pelos nas orelhas (rs), não falava uma palavra que compreendêssemos e vice-versa, mas tirou de sua mochila um frasco com solução de arnica e, com maior cuidado, limpou minhas feridas, examinou, despediu e se foi... nunca mais o vi.
Resumo, não quebrei nada, mas daí estraguei o outro joelho, as duas pernas, o tornozelo, o cotovelo, tudo escalavrado...

Cirauqui- Lorca - Ponte Medieval (dos Romanos!)

Tínhamos acabado de sair de Cirauqui, que em euskera quer dizer ninho de víboras, para mim é ninho de víboras romanas, ainda faltava Lorca e Villatuerta, num trecho mal sinalizado e que passava pela estrada de asfalto...
Foi difícil chegar até Estella!

Gente! A Cris apareceu! Deixou a seguinte mensagem:

Oi pessoal! Eu sou Cris.É, essa mesma que a Kátia fala aí. Ela teve que vir aqui em casa pra me ensinar lidar com essa joça de computador...eu sou é zen. E eu queria tanto dizer que, se pra vcs está sendo bom, imaginem pra mim que vivi essa grande aventura junto com meus queridos amigos. É lindo ficar na frente do monitor chorando que nem babaca. Bjs

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

REMINISCÊNCIAS DO CAMINHO

Parzinho de Jarras em Roncesvalles - Ainda a caminho de Saint-Jean
Santa Ignorância!

Agora que acabaram-se as Olimpíadas, minha secretária voltou, a gripe foi embora (só deixou para trás aquela lambança habitual), voltemos à nossa história, ou melhor, retomemos o Caminho.
Mas antes disso, ontem eu fui à casa da Cristina. E conversa vai, conversa vem, a gente se lembrou de uma porção de coisas e pessoas que eu estou deixando fora da história (bem que ela tentou comentar no blog, mas não conseguiu... mas agora eu já orientei direitinho!), então, no capítulo de hoje vou resgatar isso. Mesmo porque ela me emprestou suas anotações, que servirão de grande ajuda para eu não me esquecer mais das pessoas nos lugares certos (rs).
1) As primeiras pessoas realmente legais nós encontramos ainda no Hotel Deville, em São Paulo, para onde fomos despachadas quando o vôo foi cancelado. É claro que chamávamos atenção, roupas idênticas, mochilas idem, sem mais bagagem, uma expectativa que transbordava por todos nossos poros... daí travamos conversa com dois casais, Sérgio Lopes e Lilia, de Porto Alegre, que acabamos descobrindo serem amigos do Sérgio Reis (não o cantor, mas o jornalista), autor de um livro lindo “O Caminho de Santiago”, que eu havia lido e tirado lições importantes, que disse que falaria de nós para ele e com quem mantive contato por anos depois, até perdê-los... o que foi uma pena... O outro casal, madrilenho, não me recordo o nome, mas disse que um dos filhos havia feito a peregrinação como forma de suportar e compreender a morte do irmão e que estaria orando por nós. O hotel, de primeira, quebrou um pouco o nosso medo antecipado e quando nos deparamos com aquelas camas imensas, lençóis impecáveis, fizemos que nem adolescentes, nos pusemos a pular sobre os colchões...
2) Havia esquecido como eu sou realmente cara de pau. Como nós chegamos cedo ao aeroporto (até compramos o bendito tucano da Mme Debrill), acabamos entrando muito cedo para a sala de embarque. Só que o vôo atrasou outra vez, aquele avião não caiu porque não era nossa hora mesmo! É claro que ficamos com fome. Fomos pedir para sair. O povo da Polícia Federal com aquelas caras sérias nem olharam para a gente, só responderam que não. Daí eu olhei bem para um deles, jovem, o rapaz, e saí com essa: “Se fosse a sua mãezinha, presa aqui dentro, com fome, você não ia deixá-la sair?” Ele não resistiu e com um sorriso deixou que saíssemos.
3) Rodoviária de Madri – Depois de comprar passagem para Pamplona. Cristina poliglota tenta falar pro cara da lanchonete que queria um misto-quente. Daí ela falava: um “bocadilho com queso, jamón, caliente” e tentava mostrar as camadas fazendo gesto. Daí o cara vira para trás e grita: “Sai um misto!”. Por pouco eu nem mais preciso de banheiro, de tanto que eu ri.

Mauricio tentando fazer-me equilibrar a mochila!

4) Todos os albergues têm um livro de registros-recados onde as pessoas escrevem suas mensagens e é muito legal você ler as palavras de incentivo quando você está para morrer de cansaço e descobrir que outros sentiram a mesma coisa e seguiram em frente. E também é uma forma dos que estão à frente se comunicar com aqueles que ficaram para trás. No livro de Trinidad lemos o registro do peregrino mais velho que passou por lá – 78 anos e do mais novo, 4 anos.
5) Puente La Reina foi o primeiro albergue que tinha “Treliche” – eu já morria só de pensar em dormir na parte de cima do beliche, imagina se ia dormir acima de duas pessoas. Juro que dormiria no chão. Ainda bem que chegamos cedo e ainda tinha vaga em baixo. À noite fomos jantar no Bar do Joaquim, mas chegamos antes de abrir o “comedor” daí ficamos tomando vinho (sim, eu bebi, confesso!) e comendo uns petiscos. Conhecemos a Helenice, de São Paulo, que depois viria ao Espírito Santo fazer conosco os Passos de Anchieta e, anos depois, já viúva, se casou com um companheiro que conhecemos no Caminho e hoje vive na Europa!, O Jairo se juntou a nós e a Fátima (cozinheira) – com esses nomes é claro que eram portugueses – fez para nós F E I J Ã O!!!! Foi uma festa. No final o Joaquim nem nos cobrou o vinho, disse que era presente pela nossa alegria.
6) Descartes do Caminho não contabilizados:
Roncesvalles
– A blusa que usei na viagem (que a Cris insistia que eu tinha que deixar limpa... nem viva!!!! Porque eu estava morta!)
- A bolsa de mão que usei na viagem,
- 1 calcinha (lavada!)
Trinidad de Arre:
- Pregadores de roupa
- Par de meias
Próximo capítulo, não percam, os Romanos atravessam meu caminho!

terça-feira, 19 de agosto de 2008

MEU MOMENTO OLÍMPICO (INTERLÚDIO DOIS)


Se tem um sentimento que estou tentando excluir do meu repertório de más tendências é a raiva. Mas parece que o mundo insiste em conspirar contra os meus propósitos. Vejam se não tenho razão:
1 – Quero matar quem teve a brilhante idéia de realizar esta edição das Olimpíadas num lugar com fuso horário de 11 horas de diferença para o nosso. Com isso, sou “obrigada” a mudar todo o meu fuso. Pela experiência nesses últimos dez dias, só posso dormir tranqüila, sem perder nada, do meio-dia (quando não há atraso em alguma competição) até as oito da noite. Acontece que o mundo real não acontece na tela da TV, então, durante esse período tenho que cumprir com todos os meus compromissos, mesmo morrendo de sono.
2 – As camisas de trabalho do meu marido estavam horríveis, e é claro que seus colegas, ao olharem-no, vão logo pensar, não dele, mas de mim, “que mulher relaxada” nem roupa o pobre tem. Como se fosse obrigação da mulher o bem vestir do esposo. Acontece que por minha culpa, reconheço, aqui em casa é assim. Eu que compro tudo, da meia ao terno. Azar para mim. Daí, juntando o útil ao agradável, peguei uma promoção e “demos de presente de dia dos pais” dez novas camisas. Até aí tudo bem. Todos felizes.
3 – Não nasci para o serviço domestico. Quando criança, minha mãe insistia em me ensinar a fazer coisas como cortar carne (arre!!), lavar banheiro, etc. e eu dizia, “um dia vou trabalhar, ganhar dinheiro, e pago alguém para fazer para mim”. Até que deu certo. Até certo ponto.
4 – Na fase dos 50 aos 60 anos você fica desamparado. Não é novo para fazer certas coisas nem “idoso” para aproveitar as benesses da idade, entre elas, ter direito à vacina antigripal.
Resultado destas ponderações:
Peguei uma gripe daquelas, meu nariz mais parece um chafariz! Com direito a febre, dor no corpo, vontade de ficar na cama, quietinha, sem piscar nem o olho.
Minha empregada adoeceu, não veio, e eu tinha lavado todas as camisas novas do Roberto (e já dado as velhas) já que ele só usa roupa nova depois de lavada: e eu odeio passar roupa! Mas sobrou para mim, arrumar casa, passar roupa, etc.
Isto depois de ter passado o domingo e madrugada vendo resultados negativos e assistindo, impotente, os chineses boicotarem a Fabiana Murer e as americanas Walsh e May comerem o fígado das brasileiras nas areias...
Olimpíada, gripe, ausência de secretária! Afe!
Já nem quero revanche, não sobrou nadinha do espírito olímpico, não quero revanche.
Hoje, da vida, quero vingança!

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

DE UTERGA A PUENTA LA REINA

Ermida de Nuestra Señora de Eunate

Depois de uma noite mal dormida partimos em direção a Puente La Reina. Relativamente perto, pela trilha daria uns sete quilômetros. Porém, entre Óbanos e Puente La Reina existe uma igreja, Ermida de Nuestra Señora de Eunate, que eu queria muito conhecer e, para chegar até lá tem que pegar uma outra trilha e fazer como que uma curva grande até voltar ao caminho original. Mas valeu cada passo. Essa igreja, que não pudemos conhecer por dentro pois era segunda-feira e não abria (arre!!!!), foi construída pelos Templários, no século XII, fica entre o nada e o coisa nenhuma, ou seja, é um campo a perder de vista e a igreja no meio. Construção octogonal, reza a lenda que nenhum peregrino deveria deixar de visitá-la, apesar das bolhas nos pés, para poder ter assegurado que terminaria a peregrinação. Eunate, que significa “cem portas” em “euskera” dialeto falado nesta parte da Espanha, segue o desenho do Templo de Jerusalém e sua obra é carregada de simbolismo, como disse, um octógono dentro de outro muro octogonal, cheio de esculturas que vai de anjos a demônios.

Fizemos um pit-stop e retomamos a trilha.

Muruzábal é um povoado pequenino e tem uma igreja bonita, só isso!

Óbanos tem importância histórica (e muitas, muitas rosas) e um casario do século XIV muito bonito.

Em Uterga eu havia descoberto uma pequenina bolha no meu pé (a primeira, mas na minha ignorância julgava ser a única), então, durante a caminhada, meu pé começou a doer mais do que o normal. Como não tínhamos dormido quase nada, chegamos a Puente La Reina muito cansados e decidimos que não prosseguiríamos naquele dia. Meu joelho estava em frangalhos, meu corpo, um bagaço! O refúgio é aconchegante, grande, e nós logo estendemos nosso varal e eu decidi ficar no albergue para lavar roupa (diz Cristina que nunca viu nem homem lavar roupa tão esquisito que nem eu, para ser delicada!), descansar, enquanto Cris e Mauricio decidiram ir à missa.

Detalhe do Crucifixo - Cruz em forma de Y - Séc. X - Igreja em Puente La Reina

Fiz meu serviço e depois fui tomar banho. Foi minha primeira experiência com banheiro misto. Meio estranho, mas carreguei minhas coisas (inclusive uma toalha de rosto que o Mauricio me deu, porque eu esqueci a minha em Uterga, graças a Deus! menos um peso, já que a que ganhei era mais leve e apropriada!) e tomei meu banho, saí já vestida. Quando sentei no beliche e fui cuidar dos meus pés, descobri uma bolha grande na lateral. Daí não agüentei. Comecei a chorar, e muito. Foi quando chegaram o José Carlos e o Jairo, aqueles que eu citei no capítulo da Mme Debrill e eles tentavam me consolar, e eu só fazia chorar e dizer que queria a Cris e o Mauricio, eles já estavam a ponto de sair a procurá-los quando eles chegaram.

Acho que todo o choro que eu guardei nestes dias saiu de uma vez só! Chorava de dor, de impotência porque não havia nada que eu pudesse fazer a não ser “costurar” minhas bolhas (passar uma agulha limpa com linha de um lado a outro e deixar a linha, como que um dreno).

Neste meio tempo, sai um homem do banheiro, pela cor acho que era alemão, praticamente nu. Cristina quase desmaiou. O Mauricio ficou uma fera, quis brigar, disse que era falta de respeito, foi difícil contê-lo. Daí, quando conseguimos sossegar a fera, sai uma mulher, na faixa dos seus sessenta e muitos anos, enrolada numa toalha, aproxima do beliche, tira a toalha e fica nua, troca a roupa, como se estivesse sozinha no seu quarto. Foi então que nos demos conta das nossas primeiras e grandes diferenças, principalmente as culturais, e o quanto precisaríamos exercitar a paciência e aceitação do outro para que pudéssemos ter uma convivência pacífica.

Reencontramos Ana e Walter. Tivemos notícias de que Maria do Carmo e seus fiéis escudeiros estavam a caminho, e bem!

Puente La Reina (detalhe para sacolinha de compras: comida!)

Naquele dia, depois das compras (sagradas), espalhei minhas coisas na cama e comecei a descartar o peso inútil. Dei meu travesseiro para o Maurício, na caixa onde ficam os descartes do tipo "eu coloco o que não quero, você pega o que precisa", deixei shampoo, creme de cabelo, sabão de coco. A partir daquele dia era um só sabonete. Com ele eu lavava os cabelos, tomava banho e lavava roupa... e juro que meu cabelo nem reclamou!

Também abandonei o meu caderno, onde estava anotando algumas impressões e as fotos que tirava. Fiquei com apenas algumas folhas.

Foi difícil me desfazer dele... mas eu começava a aprender que no caminho, como na vida, existem momentos em que é necessário uma parada para se descartar os pesos inúteis que carregamos, sejam eles um frasco de shampoo ou uma mágoa.

Dormi sem saber como meus pés estariam no dia seguinte.

Amanhecer em Puente La Reina

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

MAS VOLTEMOS AO CAMINHO!

Chegada a Pamplona - Fortificação Romana (75 a.C.)

Foi difícil sair de Trinidad de Arre! É um ambiente tão prazeroso que dá vontade de ir ficando, ficando... mas, por fim, saímos e atravessamos Villava.

Fica pertinho de Pamplona (para quem está de carro, claro!), são 4,6 km., então chegamos relativamente logo, a tempo de fazer um bom lanche de café da manhã sentados na porta de um bistrô!

Pamplona é uma cidade linda, apesar de grande, muito limpa e acolhedora. Todos foram muito atenciosos, mostrando-nos a direção certa quando errávamos e indicando-nos onde encontrar o que procurávamos.

Foi nosso “Primeiro Caminho Urbano”! A gente chega por uma ponte românica e atravessa por fortificações que datam de 75 a.C., passamos por construções milenares fantásticas. Visitamos a Catedral “Românica”, porém que da parte românica propriamente dirá só têm alguns vestígios, mas tem os túmulos, bem no centro da nave principal, de Carlos III e sua esposa Leonor de Trastámara, em estilo gótico. Interessante é que em uma torre tem um relógio comum e na outra um relógio de sol.

Pamplona - Catedral

Em Pamplona comprei uma joelheira para poder devolver a da Cristina, mas errei no tamanho, resultado? Cristina seguiu sem a dela!

Depois de atravessar toda a cidade, literalmente, conseguimos encontrar a porta de saída e retomar o Caminho (não sem antes nos perdermos várias vezes - rs).

Logo depois de Pamplona é que se encontra o famoso “Alto del Perdón”, o primeiro grande morro que teríamos que enfrentar. Dizem que assim se chama porque para subir se paga todos os pecados. Eu digo que os pecados maiores ficam para a gente pagar na descida...

Subida do Morro do Perdão vendo Pamplona ao fundo

É uma vista maravilhosa, não importa para que lado você olhe. Se para trás, avista toda Pamplona no seu esplendor, se adiante o Morro do Perdão e seus moinhos de vento (apesar de não moer nada!), se para os lados a vegetação multicolorida...

No alto, além de uma ermida dedicada a “La Virgen del Perdón”, tem um monumento aos peregrinos cuja legenda não poderia ser mais apropriada: “Donde se cruza el Camino del viento com el de las estrellas”.

Alto del Perdón - Monumento ao Peregrino

Descansamos e empreendemos a descida. Pedras soltas. Atenção redobrada, força extra para manter o equilíbrio, aqui sim, se paga todos os pecados, inclusive os que ainda iríamos cometer!

Dezesseis quilômetros e seiscentos metros depois chegamos a Uterga!

Eu havia lido (foram tantos os livros que não me lembro qual!) que nesse povoado, apesar de não ter albergue, pois fica muito próximo de Puente La Reina, algumas pessoas abrigam peregrinos, então eu tinha a indicação de uma casa que fazia isso.

Nós chamamos, fomos atendidos por uma jovem senhora e duas crianças, que disse que éramos benvindos, nos alojou numa suíte no térreo do sobrado (seu esposo é médico e tem seu consultório ali também) e nos explicou que, como a cidade estava em festa, eles teriam que sair, mas que não havia problema, ela nos daria as chaves da sua casa e depois, no dia seguinte, deixaríamos no lugar combinado (não sei nem o nome deles!).

Eu fiquei “passada”! Foi uma prova tão grande de desprendimento, de confiança, que na hora eu fiquei envergonhada em achar que eu realmente fazia alguma coisa pelos outros. Mal sabia que era só o começo de uma grande lição!

Tomamos banho (quente!), colocamos roupa limpa e fomos procurar uma lanchonete.

Fomos atendidos por uma senhora muito simpática, que não media esforços em atender a cada um no que realmente queria comer. Lembro que tomamos sopa, comi tomate (dá-lhe Kátia!), pão recheado com omelete (viria ser “nosso prato” = bocadillo de tortilla), cola-cola, café, vinho tudo regado com muito carinho. Enquanto comíamos chegou outro peregrino e começou a ler um papel onde contava a história de Doña Blanca, a senhora que nos servia. Ela serve comida a todos os peregrinos, de graça. Leram bem, DE GRAÇA! Quem pode, e quer, deixa uma contribuição para quem não pode. E tem mais, aqueles que não têm onde dormir, ou se machucaram no Morro do Perdão, ela acolhe e cuida até que estejam prontos para seguir adiante. Tudo feito com tanto amor e carinho, desde as rosas frescas sobre a mesa, a cesta de frutas, a comida de-li-ci-o-sa, a atenção capaz de emocionar o coração mais fechado.

Deixamos uma colaboração cada um, mas levamos conosco muito mais. Exemplo de abnegação, de amor ao próximo, de caridade ao extremo.

Foi em casa de D. Blanca que conhecemos Pepe, peregrino que já percorreu o Caminho mais de quinze vezes e ajuda quem está em dificuldade. Chegava com duas brasileiras que haviam se machucado na descida do Perdão e deixava-as aos cuidados de D. Blanca.

Mas como nem tudo é perfeito (já dizia a raposa do Pequeno Príncipe), a tal festa da cidade, lembram? O palanque ficava próximo da casa que nos hospedava, música alta a noite inteira, ninguém conseguiu dormir... quase que saímos de madrugada.

Mas esperamos o dia clarear...

Vista do Alto del Perdón - Uterga é o pequenino povoado abaixo (com boa vontade enxerga!)



sexta-feira, 8 de agosto de 2008

INTERLÚDIO – AO MEU PAI


Hoje, vésperas do dia dos pais, me peguei pensando em você, em nós, em tudo que fizemos juntos, em tudo que não tivemos tempo para fazer... Quantas recordações!
As revistas trazidas após o serviço eram escassas, reconheço, mas era tudo o que o seu pouco dinheiro permitia e desenvolveu em mim o gosto pela leitura; a ilusão gostosa que o seu pai é o melhor, e, para mim, você era o melhor pai do mundo; me ensinava o dever da escola (apesar de só ter estuda o primário), me dava carinho, atenção e me respeitava como ser humano.
Na falta de um filho homem para te acompanhar, me levava para pescar, com você aprendi a jogar canastra e a grande lição que ainda hoje carrego comigo, de que na vida como no jogo, a gente nem sempre ganha. Contigo aprendi, a contragosto, a perder.
Quanta saudade!
Saudade até das broncas quando eu aprontava alguma (e parecia que o meu repertório de diabruras não tinha fim), você falava, falava, tentando dar-me lições, mas do alto da minha adolescência eu nem prestava atenção, achando que você era “quadrado” demais... Não posso negar o fato de que você nunca levantou a mão para me dar uma palmada sequer, mas os seus sermões eram famosos entre os meus colegas.
Você se lembra quando me levou para trabalhar com você? Eu era pouco mais que uma criança – 13 anos – mas você confiou em mim e me fez o que sou hoje. Lembra-se das nossas conversas? Nossas brigas? Eu não admitia que estivesse errada e você sempre me respondia: “Quando você tiver os seus filhos você educa do jeito que quiser, mas eu vou te educar assim.”
Sabe, Pai, hoje eu educo os seus netos do mesmo jeito que você me educou e vejo, um pouco tarde, que você estava certo.
Lembra das minhas choradeiras quando vim embora para a “cidade grande”? Primeiro porque você não queria que eu viesse, era muito nova – 17 anos – mas teimosia nunca me faltou e vim assim mesmo. Brigando, bem ao meu estilo! Depois do “estrago”, todo final de semana passado em casa se transformava num tormento na hora do retorno. Você me fazia voltar dizendo que minha vida estava aqui... tenho que reconhecer que também estava certo!
Entre nós nunca houve cobrança. Quando você se aborrecia comigo (infelizmente mais vezes do que gostaria) chorava suas lágrimas escondido e perdoava sempre.
Lembra-se do seu orgulho quando passei no concurso da Caixa? Você contava para todo mundo como se eu tivesse acertado a sorte grande, eu ria e você respondia: “Lá você estará segura, não dependeu de ninguém e não deverá a ninguém esse emprego”.
Tantas batalhas enfrentamos juntos e tantas vencemos.
A última, a derradeira, eu não pude te ajudar. Me vi impotente diante do gigante que ia acabando pouco a pouco com você.
E você se foi...
Tanta coisa ficou por ser dita, tanta carícia por ser feita. Você nem pôde ver seus netos crescerem... Então me revoltei contra tudo e contra todos. Não era justo acontecer logo com você. Eu blasfemava que Deus não havia sido legal comigo, ele não havia sido justo quando tirou você de mim. Só bem mais tarde compreendi que se Ele te levou era porque você era bom demais para viver nesse mundo conturbado de hoje.
E ficou essa saudade imensa que insiste em doer, 26 anos depois.
Daria tudo para poder enviar-lhe esta carta, mas materialmente é impossível, pelo simples fato de que, nos Correios, eles não aceitam Céu como endereço.
Mas de onde você estiver, receba meu carinho e o beijo desta que se orgulha de ter sido sua filha,

Kátia

PS. Parabéns a todos os Pais. Ao Pai dos meus filhos, ao pai dos filhos que não tive, aos pais presentes e ausentes, enfim, a todos os homens que conseguiram compreender o significado de ser Pai.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

PELO CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA


SEGUINDO PELO CAMINHO...

Trinidad de Arre - Puente Medieval


Saímos de Zubiri cedo, por volta de sete e meia, mas acontece que naquela época do ano (maio-junho) o dia demora em ficar claro, então, para mim, toda manhã era madrugada...
A trilha deste dia foi mais tranqüila, embora no início tenha um trecho de subida bem enjoadinho, mas meu joelho começou a doer e a Cris me emprestou uma joelheira (já que não fazia parte do meu kit de sobrevivência). Mas, apesar do caminho ser mais fácil, interiormente foi muito difícil. Parece que as dores duplicaram, a saudade não cabia mais dentro do peito, foi um caminho de muita reflexão e muitas lágrimas.

Larrasoaña - Iglesia de San Nicolás de Bari - Século XIII

Passamos por pequenos povoados até chegar a Larrasoaña, que desde o século XI já recebia peregrinos e é uma cidade muito bonita, com construções medievais e uma igreja do século XIII.
Logo ao sair temos que cruzar o asfalto e o Mauricio ficou fazendo graça se ajoelhando no meio da estrada e eu gritando para ele sair. Êta arrependimento! Devia deixar ele lá, estatalado! (mentirinha... rs) E a gente vai passando por “pueblos” Akerreta, Zuriain, Irotz e é um tal de entra e sai da estrada que irrita qualquer um, porque, naquela altura, barulho de carro incomodava muito.
Nesta altura já havíamos aprendido a comprar, na tarde anterior, a comida para a manhã seguinte e também para levarmos durante a caminhada, então, almoçamos na estrada.
Este dia caminhamos 16,2 km e por volta de 14:00 h chegamos a Trinidad de Arre. Porém o albergue só abria às 15:00 h. Daí a Cris e o Mauricio foram para o centro da cidade (Villava) que foi fundada em 1184, procurar um supermercado, ou venda, ou armazém, sei lá, e eu fiquei perto do albergue que fica ao lado da igreja, com uma ponte medieval à frente.

Trinidad de Arre - Basílica de Arre - Século XI

Foi aqui, nesta ponte que conheci Esperanza e Alonso, mexicanos, que tornar-se-iam grandes amigos. Amigos para o resto da vida...
Estava eu na ponte, admirando o rio e vejo chegar uma mulher bonita, mais ou menos da minha idade, acompanhada de um rapaz moreno, alto, bonito e sensual. Gente, o menino era tudo de bom! E o carinho que ele tinha para com ela, ajudava a carregar a mochila, a cruzar as partes difíceis, etc. Bom, ficamos conversando por um bom tempo e eles resolveram seguir até Pamplona. Depois eu comentei com a Cristina e o Mauricio:
- Vai ter sorte assim no raio que o parta! Arrumar um “namorado” deste jeito! Até eu que sou mais boba...
Quis o destino que nossos caminhos continuassem a se cruzar por várias vezes e vou confessar, tive até uma pontinha de inveja da minha amiga.
Muitas cidades depois, estávamos conversando e ela me diz que Alonso era seu filho. Eu caí na gargalhada e ela, sem compreender nada. Daí eu expliquei que pensava que ele era seu amante... Até hoje, quando nos encontramos, rimos muito desta história! (ela já veio ao Brasil visitar-me, eu já fui ao México estar com sua família, ou seja, estava decidido que era para sermos amigas nesta encarnação).

Albergue do Irmão Luciano


O albergue é super simples, mas o Irmão Luciano (Marista) é mais um anjo do Caminho, simpático, sensível, acolhedor, faz com que sintamos em casa, verdadeiramente. É um dos albergues mais limpos e bem cuidados de todo o trajeto, conta até com um quarto separado para os roncadores (rs). Também reencontramos Maria do Carmo, Osmar e Ademir. Conhecemos Ana e Walter – alemães, Pablo – espanhol e fizemos uma grande refeição em família, principalmente quando a Ana me ofereceu um pedaço de tomate e eu aceitei (estava com água na boca) e a Cris quase me matou (rs).
O Irmão Luciano é tão atencioso que até pregador de roupa ele disponibiliza para os peregrinos, aqui, apesar das dores físicas, comecei a repensar sobre o que é luxo e o que necessário!
Mal sabia eu que iniciavam as minhas dores da alma!

Mauricio fazendo "gracinha" pelas estradas da Espanha

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

RONCESVALLES A ZUBIRI – O TEMPO NÃO PÁRA

Trilha Roncesvalles - Burguete
Depois que escrevi o relato anterior, lembrei-me de um fato que, no dia, foi horrível, mas depois virou até grito de guerra.
No meio do dia, eu já exausta, minha vontade era parar num ponto qualquer, sentar e esperar pelo Paulo Coelho (ele não ficou rodando pelos Pirineus?, pois é, na época que nós fomos ele também estava no Caminho). Parecia que os morros de lá só tinham um lado, o da subida. A gente subia, subia, e quando pensava que ia descer, aparecia outra subida. Ninguém agüentava mais. Até o Maurício, que tinha preparo físico já estava cheio e cansado. Ele percebeu que eu estava no ponto de exaustão, que ia cair a qualquer momento, daí ele saiu caminhando um pouco à frente, eu já me arrastando, que nem taruíra (lagartixa na língua “capixaba”), daí ele gritou “OOOOOObbbbbaaaaaa!!!”... eu lá atrás pensei: é uma descida. Quando eu cheguei ele estava sentado, rindo de raiva e, à frente, mais uma subida. Daí nós caímos na gargalhada e arrumamos mais força para seguir. O “Oba!” (gritado) acabou virando sinônimo de um caminho mais difícil à frente.
Pois é, depois de tudo que aconteceu naquele dia, depois de encher a barriga eu só queria dormir. O que não foi tão fácil assim, já que era a nossa primeira noite num albergue de verdade, ou seja, nosso primeiro contato com roncos em todas as escalas, fedor de chulé, etc. Mas coloquei tampão de silicone nos ouvidos e dormi mais ou menos.
Acordei na madrugada seguinte, coisa absurda para mim, pois eu odeio acordar cedo, e demorei a perceber que tinha acordado porque todo o meu corpo doía. A única coisa que não doía em mim eram os cabelos (rs). Lembro de ter feito um auto-Reiki para tentar amenizar porque a coisa não estava nada bonita para o meu lado.
Lá pelas 6 da madrugada o pessoal começou a levantar e é assim: dane-se o mundo, eu vou levantar, mudar de roupa, mexer naqueles sacos plásticos que fazem um barulho infernal e f... quem quiser dormir!
Sem outra opção, levantamos e nos preparamos para colocar o pé na trilha outra vez.
Ali começamos a juntar o maior tesouro que o Caminho nos proporcionou: Amigos! Lá conhecemos a Maria do Carmo, seu esposo Ademir e o irmão Osmar. Nossas trilhas, albergues, restaurantes foram os mesmos durante muitas partes do Caminho... mas, quis Deus, ao voltarmos ao Brasil, chamar a Maria do Carmo para mais perto dele...
E fomos nós...
Gente, a trilha até que era boa e passava por um bosque lindo. Senti que a qualquer momento Robin Wood ia pular de trás de uma árvore, parecia que a gente estava num filme. Nesta altura, também, já tínhamos cajado, que não é enfeite, tem lugar que sem a ajuda dele é quase impossível atravessar e facilita muito a caminhada.
Neste dia passamos por Burguete, que tem umas casas com brasões na fachada, lindas!
Espinal, que tem uma igreja que até hoje eu não sei quem foi o louco que projetou e o acéfalo que permitiu a construção: ela tem telhado igual de chalé com sótão, cheio de janelinhas, com telhas de ardósia, janelas de vidro e alumínio, feita em pedra tipo granito bruto, com uma torre que é uma construção à parte... depois de tanto tempo não sei dizer se é só diferente ou se é feia mesmo.

Alto de Mezkiritz


Chegamos ao Alto de Mezkiritz, onde tem uma pedra, em forma de lápide, com a inscrição: Aqui se reza uma salve a Ntra Sra de Roncesvalles”. Por via das dúvidas, como dizia minha mãe: “reza e água benta não fazem mal a ninguém”, rezei uma salve. Aqui também deixei um dos três cristais que tinha levado do Brasil para deixar no caminho, pois queria trazer três pedrinhas de lá.
Por várias vezes o Caminho cruza a estrada asfaltada e retoma a trilha na mata.
Passamos por Biscarreta onde almoçamos fartamente, conforme podem comprovar na foto (rs). Quem for lá pode procurar pelo bar do Juan. Fome nunca mais, eu jurei!


Biscarreta - Bar do Juan

Nosso caminho ainda passava por Lintzoain e estava sendo uma caminhada mais tranqüila (de barriga cheia), repleta de brincadeiras, um dia feliz, até... até chegarmos à trilha do Alto de Erro. Lama, lama preta que não acabava mais. Não tinha onde colocar o pé sem atolar. A gente ficava com o pé agarrado e na hora de puxar fazia aquele barulhinho “chuuuuuuuppppp” e soltava! Quando não era lama era pedra, e pedra solta. Não sei o que era pior. Pensei assim, não tem mais nada que possa ser pior do que já passei.

Mas tinha coisa pior...
Chegamos ao albergue de Zubiri e fomos informados que estava lotado! Não havia mais nenhuma vaga no Refúgio. Daí saímos, mochila nas costas, de pensão em pensão, hotel, casa de família, marquise... não havia vaga. Não estava nos meus planos dormir ao relento. Já estava cansada, tudo tinha voltado a doer. Não agüentava mais andar e, sem outra alternativa, resolvemos voltar ao Refúgio. Quando chegamos lá, pela segunda vez, encontramos um brasileiro, de Goiânia, Alberto Sartori, que acho que ficou com pena da gente e disse que era para esperarmos pela hospitaleira que logo voltaria, que ele tinha certeza que ela resolveria nosso problema. Isso me deixou um pouco mais animada. O albergue fica numa construção que parece ter sido uma escola pequena.
Logo depois chegou Loly, nosso segundo anjo do caminho (se contarmos com o Alberto, o da mentira piedosa). Ela voltou na sua casa, arranjou uns colchonetes e nós nos acomodamos no chão. Mas tomamos banho quente, comemos e o povo ficou tomando vinho até tarde. O Maurício, no final, estava até conversando com um suíço numa língua que nem ele sabe dizer qual é.
Foi também em Zubiri que conhecemos um alemão que cruzaria nossos caminhos muitas vezes: o Pedro! Ele chamou minha atenção por muitos motivos, depois eu conto, mas naquele dia eu fiquei abismada foi porque ele tomou um litro de leite, inteirinho, com sucrilho, numa refeição, numa coisa que parecia uma pequena bacia. (Só tinha uma mesa do lado de fora e cada qual chegava, colocava sua comida e ia comendo... todos juntos).
Mais uma noite mal dormida: ainda não tinha me acostumado ao ronco, mal cheiro, dor, etc. (também não sabia que não me acostumaria nunca! rs)
À Loly eu presenteei com uma medalha de Nossa Senhora da Penha, Padroeira do Espírito Santo, que eu havia levado para dar às pessoas especiais que cruzassem meu caminho.
Mais um dia e eu ainda estava viva!

Já era uma pequena vitória!

Zubiri - Puente La Rabia

PS1. Amigos, perdoem-me a ausência, aqueles que me acompanham mais amiúde sabem que final de mês eu dou uma “desaparecida”, é que faço um jornal, como voluntária, e é semana de fechamento.

PS2. Estou fazendo esses relatos de memória, (estou usando como base o guia e minhas fotos) então, perdoem-me se eu esquecer alguém, ou não for muito precisa...

PS3. O jornal já está pronto. Já voltei... este mês (rs)