terça-feira, 9 de setembro de 2008

MUITAS PESSOAS – DIFERENTES LIÇÕES

Logroño - Navarrete - Caminho
Cristina saiu cedinho com a Helenice e nós ficamos para trás... levantar cedo nunca foi o meu forte!
Havíamos combinado encontrar-nos em Navarrete. Seria tranqüilo, coisa fácil, de uns 13 km., só não contávamos que a saída de Logroño é super complicada, a gente perdeu um tempão atravessando a cidade até encontrar as setas amarelas indicativas do Caminho. Não contávamos também com a “alma caridosa” que construiu uma calçada, cujas árvores ainda não haviam crescido, o que fazia o calor parecer insuportável. Tampouco com os trechos na estrada e o trânsito pesado de caminhões enormes que chegavam a nos desequilibrar com o deslocamento do ar...
Quando chegamos, enfim a Navarrete, encontranos a Cris já alterada pelas cañas e pelos acontecimentos...

Navarrete - Vista da cidade

Como eles chegaram cedo (no caminho encontraram-se com o Osmar, a Ingrid – uma alemã e um outro peregrino) e o albergue estava fechado, sentaram-se no bar da Maruja, estrategicamente instalado ao lado do albergue. Logo o Osmar chegou ao bar meio desesperado porque suas pernas estavam muito inchadas e pintadas de vermelho. Um rapaz da cidade que estava no bar, na mesma hora prontificou-se a levá-lo ao médico. Não só levou, como esperou, providenciou remédios e trouxe o Osmar de volta, por solidariedade... Como o mundo seria melhor se fôssemos, no dia a dia, solidários como somos no Caminho!
Foi neste ínterim que chegamos.
O Osmar arrasado, abraçado à Cris, chorando muito. O médico havia falado que ele teria que parar de caminhar por no mínimo 4 dias. Isto é sentença de morte para um peregrino!
Logo depois Maria do Carmo e Ademir chegaram, ficaram muito tristes pelo Osmar e decidiram ir de ônibus até Azofra, que era a cidade mais próxima que possuía melhores recursos.
Foi triste ter que nos despedir deles...
A gente se despede sem saber se um dia vai voltar a ver. É difícil ver nossos caminhos transformarem-se em encruzilhadas...
Nosso astral não estava nada bom.
Foi dando a hora do albergue abrir e nós nos encaminhamos para formarmos uma fila. Foi quando apareceram uns homens, não eram rapazolas, deviam ter mais de 30 anos, e resolveram furar fila logo na frente de um casal de velhinhos fantástico – Orlando e Micheline – e ele, Orlando, tentando ser educado, e os homens nem aí. Mauricio ficou furioso, mostrou seu lado de tiranossauro rex (sim, o apelido que demos ao Mauricio é este...), esculhambou com os caras, daí eu entrei na briga também, mais gente entrou e foi uma verdadeira torre de babel de xingamentos, mas acabou que eles foram para o fim da fila e não mais importunaram aqueles que se tornariam nossos grandes companheiros de jornada.
Tomamos banho (frio!), fizemos compras, visitamos a cidade e a Cris foi à missa enquanto eu e o Mauricio mais o Orlando e a Micheline fomos jantar.

ParêntesisMenu do Peregrino – Toda cidade onde tem albergue, vários restaurantes servem o Menu do Peregrino, que vem a ser uma refeição a um preço mais acessível. Consta de uma entrada – primero plato – que pode ser uma salada ou uma sopa, segundo plato – carne e batatas, ou macarrão, é a refeição propriamente dita, postre – sobremesa, invariavelmente sorvete ou flan (nunca mais comi flan na minha vida!) e para beber vinho ou água, ou seja, se você pedir uma garrafa de água, fica sem vinho e vice-versa. Vocês já viram algum lugar onde a água vale o mesmo que o vinho? Vão ao Caminho e encontrarão...

Quando voltamos ao albergue a Cris estava em polvorosa, o “Sir Lancelot” (creio que seu nome era Antoine), que já havíamos visto outras vezes, estava no beliche abaixo do dela... era um homem na faixa dos seus 55/60 anos, excelente aparência, educadíssimo... mas ela foi à cozinha e o encontrou com a porta fechada, vários papéis espalhados pela mesa, e falando ao microfone, desses microfones grandes, sem fio. Ela fechou a porta devagarinho e ficou em dúvida se tinha sido vista. Porém a dúvida maior era: Será que ele é um espião? (rs)
Diz ela que mesmo assim dormiu bem!


Navarrete - Ruínas do Hospital de Peregrinos San Juan de Acre (1185) - detalhe, a porta deste antigo hospital é hoje a porta do cemitério!

Um dos nossos exercícios mais fantásticos era tentar descobrir, através da adivinhação, o que cada pessoa fazia na vida e o motivo de estar no Caminho.
Uma vez que nos reduzimos ao que aguentamos carregar, o Caminho nivela todas as pessoas. Todos são obrigados a lavarem suas roupas, dormirem e compartilharem os mesmos espaços, carregarem suas coisas. Então, derrubadas as barreiras impostas pela classe social, poder aquisitivo, cargo, etc. o que sobre é o ser humano em essência e esse ser humano é que se conhece e deixa conhecer no Caminho.
Há também as antipatias gratuitas, essas não têm solução. Ou melhor, às vezes têm... Detalhes nos próximos capítulos.
Porém hoje quero compartilhar o que enfrentei na saída de Logroño. Foi nesta saída que sofri um duro golpe no ego e na alma.
Vínhamos caminhando, naqueles trajes que já não estavam mais tão bonitos de se olhar, pois eram as mesmas roupas que usávamos, lavávamos e voltávamos a usar, sem passar, porém limpas, mas já um tanto encardidas, carregando nossas mochilas pesadas, mas com a alma já um tanto leve por termos conseguido vencer mais uma etapa (cada dia era uma vitória!), sem contar as dores do corpo.

Passando por um bairro “classe A” no quesito poder aquisitivo, ao longe avistei uma senhora elegante, de “tailler” amarelo, sapatos salto 10, bolsa, jóias, tudo de grife. E a mulher era muito bonita, externamente. Ao nos aproximarmos, eu estava na frente, ela deu dois passos para trás, para não existir nenhuma possibilidade de contato físico para comigo e olhou-me, de cima em baixo, como se olha a um cão sarnento, mas sem piedade, olhar de asco!
Aquilo tocou-me a alma e eu desandei a chorar... o Mauricio tentava acalmar-me dizendo que era uma pobre coitada, que eu não chorasse, mas nada adiantava... eu não chorava por ela, chorava por mim.
Chorava pelas vezes com que devo ter olhado pelo meu irmão de jornada com aquele mesmo olhar de asco.
Chorava pelas vezes com que não consegui enxergar o outro além das vestes que ostenta.
Chorava pela minha cegueira.

Navarrete - Paróquia de La Assención (Séc. XV)

20 comentários:

Poeta Mauro Rocha disse...

Ola!!!Lembrou-me 100 Anos de Solidão, muitas pessoas,rssrrs, Ótimo texto!! Publiquei novos poemas, no estilo haicai, espero que goste!!!

BJS

MAURO ROCHA

Dry Neres disse...

Nossa, meu bem..
Que texto!!!
Amei a defesa que fizeram ao casal de velhinhos e um salve ao Tiranossauro Mau..rs
Linda.. o que me tocou em especial.. é aqui no final, quando você fala da tua cegueira.. que na verdade é a cegueira de quase todos nós.. Pude sentir o sal das tuas lágrimas.. você é intensa!
Um beijo, linda!!

Vanuza Pantaleão disse...

Kátia, minha querida!
Estou "viciada" nas tuas narrativas e um detalhe que nunca percebi em viagens a Santiago é o do autor se referir às "antipatias gratuitas", pois espalhou-se a idéia hipócrita de que todos os peregrinos são "santinhos" e fraternos, verdadeiros franciscanos...Isso é positivo, amiga, é preciso desmascarar essa bobagem de que o ser humano é perfeito e incapaz de prejudicar o próximo. Com elegância, mas positivamente, tanto caminhando, como escrevendo és autêntica, verdadeira. Essa foto da Catedral, no final, nossa! Mas não estou podendo levar mais nada, meu PC anda meio capenga, com um dos HDs avariados e mesmo que algo levasse, eu te avisaria, com certeza!
Olha, estás te cansando muito com esse trabalho...Não nos preocupe!
Uma tarde mais leve, tranquila...Bjssss
(grata pelas palavras de incentivo!)

Dauri Batisti disse...

Deve ser gratificante refazer, agora, o caminho pelas palavras.
Um abraço.

Jardineiro de Plantão disse...

Escreve de uma maneira..., que mais parece estar ao meu lado, contando o caminho...não há como não vir aqui e fazer a caminhada com a narradora.

Abraços

Anônimo disse...

Olá!!!
Deve ser uma enorme satisfação,percorrer todo esse caminho através das mais belas palavras.

Um enorme beijo

Cristina Bernardo

Pri disse...

Oii...passeando pela net parei aqui...:)
Ótima quarta... PRI :)

Paulo Vilmar disse...

Kátia!
Que aventura! Creio que é mais uma aventura para alma que para o corpo, propriamente dito. Temos planos, eu e minha esposa, de realizarmos tal caminho, daqui a quatro anos. Vamos ver.
Beijos!

Karine Leão disse...

Kátia,

Te ler é caminhar contigo! Belo texto... muito gostoso passear por cada palavra e aventura.

Beijos!

O Seu Livre Arbítrio disse...

Oi, tudo bem?!
Que bom que ajudou!

Nunca tinha ouvido falar em Navarrete, parece ser muito interessante, parabéns!

Bjosss boa quinta!
Caso eu tenha novidades sobre a musica, te avisarei, sim!

meus instantes e momentos disse...

voltando aqui, para viajar mais um pouco. E sem precisar de mochilas.
Amo teu blog.
Tenha um belo dia.
Maurizio

Ilaine disse...

Kátia!

Algum caminho me trouxe até o seu blog. Uma viagem... Está muito lindo aqui. Voltarei!

Abraço
Ilaine

Deusa Odoyá disse...

Olá minha querida e estimada amiga KATIA.

Continuo viajando com vc., por esse pais incrível e acolhedor.

Saudades amiga.
Beijos e chegue logo viuuuuuuuuuu
Regina Coeli.

RENATA CORDEIRO disse...

Você andou, hein, mulher? Barbaridade! Como muitos me incentivaram a não fechar o Blog, resolvi ficar não sei até quando. Postei hj, o post é um pouco maior do que de costume porque no fim enchi de flores. Que cada qual pegue a sua e a leve de lembrança.
Um abraço,
Renata
wwwrenatacordeiro.blogspot.com

Karine Leão disse...

Passando para lhe desejar um ótimo fim de semana, Kátia!

Beijo Karinhoso!

Anônimo disse...

Kátia...Aquelas ruínas dão uma sensação mágica.

E a primeira foto também, com aquelas árvores pequenas enfileiradinhas... Nossa!


Um dos meus 'sonhos' é poder viajar pra muitos lugares. Me encanta!


Beijocas,
www.lizziepohlmann.com

Nadezhda disse...

Toda vez que leio um pouco do seu caminho aprendo algo, mesmo nunca tendo passado por esses lugares!

"É difícil ver nossos caminhos transformarem-se em encruzilhadas..."

;)

RENATA CORDEIRO disse...

Por motivos horríveis que não pude contornar, fui obrigada a fazer um post cala-boca. Pegue suas flores, não é preciso ler tudo.
Um abraço,
Renata
wwwrenatacordeiro.blogspot.com

Paula Barros disse...

Estou aqui quase a chorar, com as suas reflexões e com o seu choro.
Hoje já chorei demais. POr me dá conta do muito que quero melhorar.

Mas já recebi carinho e já sorri.

É como você no post acima não é por fazer a caminhada que não se terá mais questões a serem melhoradas.

E percebo que dependendo das pessoas, exisite as antipatias, as briguinhas, e o cansaço até deixe as pessoas mais sensíveis a ponto de perderem um pouco a razão.

abraços

Anônimo disse...

Lições de vida...mudar como pessoa...aprender novas e interessantes coisas...acho que cada vez, lendo isso aqui percebo oque quero encontrar...mais e mais lições...sem duvida voce termina a caminhda mais purificado....na minha profissão é assim...um eterna caminhada...mudo de companheiro de jornada sempre...a cda ano, a cada mes, a cada dia....aprendo, passo lições, faço amizades...e procuro evitar a inimizades, alumas inevita´veis...mas nunca de mim para eles