PERDOANDO DEUS
Clarice Lispector
Texto publicado no Jornal do
Brasil em 19/9/1970 e depois no livro "A
descoberta do mundo".
Eu
ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar,
pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava
distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito
rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava
percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem
deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que
nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra,
o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor
senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe.
Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente
um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se
deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a
intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito
certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama
ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas
nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho
por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor
apenas livre.
E foi quando quase pisei num
enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de
viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como
podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas,
terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os
olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande
rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O
meu medo desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui
continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada
pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira
minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os
dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o
meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar
desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa
que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço
o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para
esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a
palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua
um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que
desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do
mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando
pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente,
e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me.
Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão
inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava
esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um
Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me
esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem
ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual
seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O
visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava
mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me
ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é
ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas
vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as
vergonhas Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa
vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua
reputação.
... mas quem sabe, foi porque o
mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato
também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo
matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia
que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por
ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene,
sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em
oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É
porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É
porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda
não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também
porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com
brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me
foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque
só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca
poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use
o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o
formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha
simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me
sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito
mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos
para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que
aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato.
Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só
porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa
olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas
contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser
um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o
tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só
porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me
acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu
contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me
habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu,
que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais
inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma
terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me
quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto
eu inventar Deus, Ele não existe.