CHEGANDO AO MARCO 100 KM.
Caminho Sarria - Brea
Vocês lembram que o homem havia dito que seu amigo roncava? Brincadeira... roncava não... ele tinha era engolido uma britadeira que ficou ligada a noite toda, incomodando o albergue inteiro. Felizes os que resolveram caminhar à noite. Eu passei a noite praticamente em claro. Não havia silicone no ouvido que desse jeito. E o dito cujo estava bem na cama abaixo da do pobre do Mauricio. Lá pelas cinco e pouco da manhã, uma espanhola que não lembro o nome, levantou, acendeu a luz, começou a arrumar suas coisas e fazer barulho, daí houve quem reclamasse, ela retrucou dizendo que o sujeito havia incomodado todo mundo que reclamassem com ele, tudo isso aos berros... A maior baixaria!
Bom, não teve jeito, levantamos e preparamo-nos para seguir adiante.
Como Deus e Santiago não abandonam os seus, a Rosa – mãe de Angeles, estava com a perna machucada e iria de táxi até Portomarín e se ofereceu para levar minha mochila. Então foi um alívio saber que enfrentaria os 22 km. que me esperavam sem ter que levar peso.
Apesar de tudo foi uma boa caminhada. Muitos bosques, atoleiros, poucos povoados e muito, muito sol.
Atoleiro Brea - Portomarín
Fomos devagar, parando quando dava, ou quando eu cansava, e assim passamos por Barradelo, Rente, Brea.
Brea - Mauricio e Lua
Em Brea paramos num pequeno bar para comer alguma coisa e tinha uma cadela – “Lua” – que caiu de amores pelo Mauricio. Era a coisa mais linda, a gente sentada e ela buscava um bicho de pelúcia e ia até o Mauricio e ficava mexendo com ele até ele levantar e ir atrás dela fingindo que ia pegar o bichinho... Foram momentos agradabilíssimos e inesquecíveis. Uma alegria quase infantil. São momentos assim que me faziam esquecer as dores, as bolhas, infecção, antibiótico, o escambau!
Marco 100 km (tem gente mal educada em todo lugar)
Passamos pelo marco de 100 km. e deu um aperto no coração. Estávamos chegando ao final da nossa “epopéia”, mas ao mesmo tempo não queríamos chegar, pois chegar representava deixar de ser peregrino, assumir outra vez nossos papéis na sociedade, separar-nos.
Meu coração era uma total contradição e eu ainda não conseguia digerir o que estava acontecendo...
Portomarín
Chegamos a Portomarín com o sol a nos cozinhar os miolos. Depois da rotina de peregrino (lavar roupa, banho, arrumar mochila, etc.) fomos para um parque vizinho ao albergue. Deitamos na relva, à sombra de grandes árvores e ficamos ali, madornando e filosofando. Segundo lembranças da Cris, havíamos reunido tudo o que tínhamos para comer: 3 pêssegos, 2 Toddynhos, requeijão, torradas e 1 barra de cereal, dividimos irmanamente e fizemos nosso lanche. Mauricio estava com dores no pé e Cris fez uma massagem caprichada.
Saímos para conhecer a cidade.
Parêntesis 1: Portomarín é uma cidade recente. Embora antiga. Foi um importante povoado do Caminho no período medieval. O povoado original, formado por dois bairros, San Nicolás e San Pedro, ficava às margens do rio Miño e hoje jazem debaixo do grande lago, resultado da represa que construíram. O povoado que vemos hoje foi construído em 1960 para abrigar os antigos moradores. Porém nem tudo foi perdido. A grandiosa Igreja-fortaleza de San Nicolás, erguida pelos monges-cavalheiros da Ordem de San Juan de Jerusalén, no século XII, foi desmontada pedra a pedra (ainda hoje se pode ver a numeração na lateral de cada pedra) para ser reedificada na praça central do novo povoado, junto com o frontispício do antigo “Ayuntamiento” (prefeitura) e a fachada românica da Igreja de San Pedro.
Iglesia-Fortaleza de San Nicolás
O calor estava insuportável. Paramos num bar, tomamos uns refrigerantes e depois fomos jantar. Entupi-me de Torta de Santiago (um doce fantástico, e eu nem gosto de doce, que eles servem com uma bebida alcoólica por cima, delicioso!).
Detalhe das pedras numeradas
Combinamos de sair cedinho no dia seguinte para não termos que enfrentar o sol escaldante. E fomos dormir... ou melhor, pensamos que dormiríamos! Foi só a gente deitar que começou uma fuzarca no bar em frente, com gente rindo alto, falando alto, música alta. A Cris estava na cama de cima do beliche e havia deixado a janela aberta porque o calor estava insuportável, dava para ver a lua cheia, linda... Mas juro, nem a beleza da lua conseguia me acalmar. Nós já tínhamos passado uma noite em claro por causa da britadeira, agora passar outra noite sem dormir por conta daquele povo... Não sei qual vontade prevalecia dentro de mim, se era matar ou morrer.
No fim, acabei adormecendo, de exaustão.