segunda-feira, 27 de outubro de 2008

DIFERENÇA ENTRE NECESSÁRIO E ESSENCIAL

OU TAMBÉM PODERIA SER AS LIÇÕES DO CAMINHO



A “esparrela” (na linguagem da Cris) que passamos até chegar um Calzadilla me fez parar e refletir muito.
Uma vez que Calzadilla não tem nada para fazer, nem ver. É apenas uma rua, vinte e poucas casas, os jovens indo embora, sobrando só os velhos... Fiz que nem o Mauricio, fui arrumar meu inconsciente... Espalhei tudo na cama!
Quando estávamos preparando a viagem fizemos listas das coisas que julgávamos ser necessárias e indispensáveis e, baseadas nestas listas, fizemos nossa bagagem. Mas depois de mais de 400 km de caminhada, muitas coisas deixadas para trás (isso só falando das coisas materiais) e do que despachamos para Santiago, verifiquei que meu conceito de essencial era diferente do conceito de necessário. Quando espalhei minhas coisas e vi o “tiquinho” de bagagem, descobri, realmente, que a gente pode viver com muito pouco. Não estou dizendo que no dia a dia venhamos a viver da mesma forma espartana, mas houve uma época que para ser feliz eu tinha que comprar pelo menos dois pares de calçado por mês... para quê? Se só tenho dois pés!
Para vocês terem uma idéia, vejam a lista do que iniciei a jornada e a que fiquei reduzida:

Remédios que levei
- Elixir Paregórico
- Polaramine
- Colírio
- Sorine
- Relaxante muscular
- Novalgina
- Tilatil
- Polvilho antisséptico
- Atadura
- Micropore
- Curativos de diversos tamanhos
- Emplastro sabiá
- Mercúrio
- Plasil
- Pomada antiinflamatória para bolhas
- Gel para contusões
- Vick
- Algodão
- Álcool
- Cotonete

O que ficou:
- Polaramine
- Relaxante Muscular
- Tilatil
- Micropore
- Curativos
- Pomada
- Gel
- Algodão
- Álcool (deixei para trás o meu e comprei um novo, chamado Álcool de Peregrino)
- Cotonete
- Betadine (Remédio espanhol próprio para bolhas, à base de iodo)

Produtos de Higiene/Toucador:
- Protetor solar
- Protetor íntimo
- Escova de dente
- Creme dental
- Fio dental
- Sabonete
- Hidratante para corpo e rosto
- Shampoo
- Creme de cabelo
- Desodorante
- Lâmina descartável
- Pente
- Baton
- Lápis para olhos
- Fitas e adereços para cabelo
- Perfume
- Papel higiênico
- Sabão de coco
- Tesoura
- Cortador de unha
- Estojo de costura


Reduzi a:
- Protetor solar
- Escova de dente
- Creme dental
- Fio dental
- Sabonete
- Desodorante
- Lâmina descartável
- Pente
- Baton
- Lápis para olhos
- Papel higiênico
- Tesoura
- Cortador de unha
- Estojo de costura (fiquei só com a linha e agulha)

Outros artigos
- 1 saco de dormir
- 1 toalha (minúscula)
- Lanterna pequena
- Bússola
- Canivete
- Protetor de Ouvido
- Fósforo
- Elástico com ganchos
- Pregador de roupa
- Fronha

Permaneceram:
- 1 saco de dormir
- 1 toalha (minúscula)
- Lanterna pequena
- Bússola (porque não era minha, senão ia para o espaço)
- Canivete
- Protetor de Ouvido

Roupas:
- 1 par sandálias Havaianas
- 1 par de botas
- 1 par de sapatos mocassim
- 3 sapatilhas de algodão
- 2 pares de palmilha
- 2 pares de meia soquete
- 4 pares de meia de algodão
- Tornozeleira
- 3 Camisetas
- 4 Camisas de malha manga curta
- 3 Camisas de malha manga longa
- 2 calças helanca para ginástica
- 3 conjunto lycra (top e bermuda)
- 3 soutiens
- 5 calcinhas
- 1 saia
- 1 blusa
- 2 vestidos
- 1 capa de chuva de plástico
- 1 capa Anorack
- 1 casaco Suplex
- 1 calça Suplex

Em Calzadilla eu tinha:
- Sandálias Havaianas
- Tênis comprados em Burgos
- 4 pares de meia comprados em Burgos
- Tornozeleira
- 1 camiseta
- 3 camisas de malha manga curta
- 1 camisa de malha manga longa
- 2 calças helanca para ginástica
- 2 conjunto lycra (top e bermuda)
- 2 soutiens
- 3 calcinhas
- 1 vestidos
- 1 capa de chuva de plástico
- 1 capa Anorack
- 1 casaco Suplex
- 1 calça Suplex

Foi, então, que descobri, que posso viver sim, e muito bem, com muito pouco... e ser feliz...
Mas a lição maior me veio da compreensão do verdadeiro significado de compartilhar. Como diz a palavra “partilhar + com”, no Caminho, depois do episódio do arroz doce, decidi rever meus conceitos e aprender. É muito fácil sermos caridosos dando ao outro aquilo que nos sobra. Alguém bate-nos à porta e doamos um prato de comida, um pacote de biscoito... doamos o que nos sobra. No Caminho aprendemos a doar aquilo que pode nos faltar. Foi lá que aprendi o verdadeiro significado de compartilhar e de caridade. Quando todos estão imbuídos pelo mesmo espírito, você encontra um companheiro de jornada, seja conhecido ou desconhecido, e ele está numa situação que necessita do único comprimido para dor que você tem. Em nenhum momento você pensa que esse comprimido pode lhe fazer falta lá na frente, você doa. É um irmão necessitado, e só isso importa. A certeza de que alguém lhe proverá a necessidade, se surgir, é tanta, que a gente não pensa duas vezes.
Das muitas lições que aprendi, talvez essas tenham sido as mais importantes:
- Precisamos de pouco para viver, a necessidade do muito surge do desejo de ser igual ou melhor que o outro, surge da comparação e não da essência.
- Caridade não é dar o que lhe sobra, mas dar, de coração, de acordo com a necessidade do outro, seja algo material, seja um pouco de tempo, seja um ouvido fraterno, seja um ombro amigo.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

FRÓMISTA - CALZADILLA DE LA CUEZA

OPORTUNIDADE DE APRENDIZAGEM


Población de Campo

Parêntesis 1: Queria agradecer a todos que se preocuparam comigo, pelas emanações enviadas (e recebidas), pelos e-mails, scraps, telefonemas, comentários... estou bem, ainda estou “costurada”, mas aos poucos vou voltando e visitá-los-ei, também aos poucos, porque só estou usando uma mão e custa-me digitar (levei três dias para digitar este post – rs)

Mais uma vez fomos acordados ao som de música... música erudita...
No dia anterior, quando chegamos, tocava música e eu comentei com a Lourdes (hospitaleira) que gostava muito de As Quatro Estações, de Vivaldi, e ficamos conversando sobre música, ela disse-me que iria fazer-me uma surpresa na manhã seguinte.
Demorei um pouquinho para reconhecer, mas estava tocando o 2º Andamento do concerto Primavera, que não é dos mais conhecidos, mas para mim é triste, lindo e tranqüilo, coincidia com o meu momento.

Parêntesis 2: Não pensem que sou profunda conhecedora de música erudita, sei que Vivaldi pertence ao período barroco e que naquela época não havia sinfonias, portanto, a obra As Quatro Estações é composta de quatro concertos... alguém muito amado me ensinou uma vez, há muito tempo, como sou boa aluna...

Fomos brindados com um lauto café da manhã, tinha até chocolate quente!
Saímos em direção a Carrión de Los Condes, que seria nosso ponto de parada naquele dia, numa caminhada de 19,2 km.
Caminhada tranqüila, a trilha parecia uma estrada de chão... passamos por Población de Campo, fizemos uma parada estratégica em Villalcázar de Sirga e seguimos...

Villalcázar de Sirga

Chegamos a Carrión cedo, muito cedo... Encontramos no bar o Sr. Escritor, conversamos enquanto eu comia um “bocadillo de tortilla” (sanduíche feito de pão recheado com omelete). É incrível como a memória da gente registra detalhes, lembro-me das cadeiras de vime, na varanda no bar, Jose Miguel numa mesa, nós na outra, conversando, ele transmitia uma paz tão grande que só ficar a seu lado, para mim, já era um presente.
Fomos ao albergue e eu vi que o Mauricio tinha estado ali no dia anterior. Estávamos decididas a ficar, pois já estavam Rosa e Angeles, Orlando e Michelini, Esperanza e Alonso, Jose Miguel, Sir Lancelot... Daí começou a chegar os brasileiros barulhentos... como era cedo e estávamos “inteiras” decidimos seguir adiante.
De todas as besteiras que cometemos no Caminho, essa foi a maior!
Não paramos para pensar que seguir adiante significava enfrentar o temido “deserto verde” e que seriam mais 17,2 km, ou seja, andaríamos, num só dia, 36,4 km.
Abrimos mão de ficar com nossos amigos por faltar-nos paciência e aceitação das diferenças.

Faltou-nos Tolerância!

Parêntesis 3: Deus sempre nos aponta dois caminhos, quando se trata de aprender algo, o caminho do amor, que incluiu paciência, resignação, aceitação, tolerância e quando não aprendemos, Ele manda a dor, daí temos que aprender na marra! Nós tivemos nossa chance de exercitar a tolerância e desperdiçamos... A justiça não veio a cavalo, veio de jato supersônico!

Carrión de Los Condes - Cristo esculpido no século XII

Esse trecho chamado (e temido) de Deserto verde constitui de 17,2 km, como disse, sem nada, absolutamente nada. Não há água, povoados, árvores. São 5 km de asfalto e depois estrada de terra numa reta interminável, campos de trigo dos dois lados e o horizonte. Não tem nem um arbusto para proteger do sol.
Lembro que logo no início da caminhada paramos para acertar os tênis e um senhor parou e nos ofereceu carona, agradecemos, mas ele insistia, dizia que com o sol a pino como estava era loucura seguir em frente, que aceitássemos pelo menos seguir com ele uma parte. Custamos convencê-lo que não aceitaríamos. Lembro-me dele ter dito: Mas ninguém vai saber! E eu respondi: Eu vou saber e isso me basta!
O sol a cada momento minava mais nossas forças. A gente caminhava, caminhava e a sensação era de não ter saído do lugar. Desolador.
Num determinado momento tive a impressão de estar tendo visões. Não era a primeira vez. Começou nos Pirineus. Eu olhava para o céu e parecia que as nuvens vinham em velocidade, na minha direção. Achando que estava enlouquecendo, não comentei com ninguém. Mas naquele dia, quando achei que ia morrer de exaustão, resolvi falar para a Cris e perguntar se ela também via. Foi quando concluímos que acontecia com ambas e nenhuma das duas tinha coragem de comentar com medo de parecer louca...
Naquele dia as nuvens corriam mais e mais rápido.
A Cris estava mal, muito mal. Naquele dia eu temi pelo pior. Cada passo custava-lhe um esforço sobre-humano.

Deserto Verde - Caminho para Calzadilla de La Cueza (única foto que tive forças para tirar)

Ao longe avistamos uma árvore, ou foi o que nos pareceu... andamos uma hora e meia para chegar até lá e constatar que era um pequeno arbusto e ainda havia uma vala entre a estrada e nosso objeto de desejo. Mesmo assim atravessamos a vala e sentamos sob a pequena árvore, pedindo a Deus que nos ajudasse a chegar ao nosso destino.
Eu já via as notícias: Brasileiras são encontradas mortas no Caminho de Santiago!

Não tínhamos noção de onde estávamos, de quanto tínhamos andado, de quanto ainda faltava. Ou seja, estávamos mesmo em apuros.
Rezei, com toda minha fé, para nossos protetores, que nos ajudassem a chegar, que mandassem uma mensagem.
Foi com muito esforço que levantamos e retomamos a trilha. No mesmo momento apareceu uma nuvem em forma de laço e um arco-íris. Mostrei para a Cris. Só podia ser sinal dos céus. Não havia chuva, nuvem escura, nada... Aquilo nos deu coragem para caminhar por mais um bom pedaço até o abatimento nos pegar novamente.
De repente, quanto as esperanças estavam no finalzinho, a Cris chamou minha atenção para os trigais. Eram de um verde que eu nunca havia visto antes (e nunca voltei a ver na vida) e eles brilhavam. Eram nossos amigos espirituais enviando-nos energia, sem dúvida!
Outra hipótese que não pode ser descartada é que estávamos tendo visões devido à exaustão, mas seria possível duas pessoas terem as mesmas visões?
Nossa água acabou...
Nossas forças também... quando, do alto de uma pequena colina, avistamos uma construção branca escrita Albergue!
Demos gritos de alegria, tentamos apressar o passo, mas não tínhamos mais forças.
Só sobrou-nos dignidade para chegar a Calzadilla de La Cueza sem engatinhar.
Quando estávamos chegando, eis que vem um rapaz correndo em nossa direção, toma-nos as mochilas, oferece-nos água... era o Phillip, nosso querido amigo das Carruagens de Fogo.
Conhecemos o Luiz, hospitaleiro, que construiu, com recursos próprios, o albergue. Gente de primeira qualidade, contou-nos como a Ana Sharp (escritora brasileira) chegou ali, desidratada e com insolação, disse-nos de seu sonho de conhecer o Brasil.
Naquele dia, jantamos cedo, tomamos vinho com analgésicos... doía desde as unhas do pé até o couro cabeludo.
Pagamos o preço da nossa intolerância!

domingo, 12 de outubro de 2008

CASTROJERIZ A FRÓMISTA

SERIAM MAIS 24,9 KM. OU MENOS?

Amanhecer em Castrojeriz


Ouvia uma música ao longe, sons celestiais (apesar de não me lembrar de ter estado no céu!)... fiquei naquele estado: será que estou dormindo, será que estou acordada, estarei sonhando?
Aos poucos o som foi aumentando... eram cantos gregorianos! Um presente do Resti para despertar os peregrinos.
Era o prenúncio que o dia seria de intensas emoções...
Havia, no andar superior, uma enorme mesa de café, com pão, leite, frutas, tudo ofertado pela comunidade, num trabalho incansável do nosso hospitaleiro, com sua cara de mau, mas com um coração maior que seu grande corpo. Logo encontrei, à mesa, Valentim, o Hippie. Preocupada perguntei onde tinha passado a noite com sua cadela e ele me respondeu que depois do toque de recolher, Resti o havia introduzido no albergue, arrumado comida para os dois, e lugar para dormir.
Mas como nem só de boas notícias começou meu dia, ao preparar-me notei que a fivela da minha mochila havia quebrado. Logo a da frente, a que prende na altura dos quadris e que faz segurar o peso. Não tinha como trocar. Improvisei uns nós e entreguei para Santiago!
Despedimo-nos, gratas pela noite, pela acolhida, pela comida e retomamos a estrada.
Era cedo, nem tanto, mas naquela época do ano o dia demora a clarear...
Estava sentindo-me bem, a Cris, idem... íamos cantando, felizes, nisto um senhor aproxima-se e fala num português com sotaque que havia ganho o dia, pois há tempos não ouvia música brasileira, que ele gostava tanto. Era Neil, sueco, presidente de uma multinacional que tinha vivido por muitos anos em São Paulo.

Parêntesis 1: Neil já tinha feito o Caminho certa vez, porém só os cento e poucos quilômetros finais que dão direito a receber a Compostelana (certidão, em latim, nos mesmos moldes dos primórdios da peregrinação, que diz ser você realmente um peregrino), mas que, depois, sentiu-se muito mal, como que estivesse traindo o caminho, por não havê-lo feito completo. Então, agora, estava, nas suas palavras, se redimindo.

Puente Fitero - Ponte que une (ou separa, depende do ponto de vista) as regiões de Burgos e Palencia

A trilha não era das mais difíceis, mas antes de Itero de La Vega, divisa das regiões de Burgos e Palencia, tem uma subida daquelas... a descida? Pior! Pedras soltas, exige muita atenção e esforço dobrado dos joelhos.
Quando estávamos chegando em Boadilla del Camino uma senhora passou por nós, de carro, distribuindo um folheto sobre um albergue (com bar) particular que estava sendo inaugurado, resolvemos ir até lá conhecer...
Não constava do nosso guia... Muito bonito, parecia casa de conto de fadas com as camas lado a lado (nem era beliche!), tudo novo e limpo. Estávamos visitando, na maior calma, quando lembrei que tínhamos que chegar cedo em Frómista, se quiséssemos pegar o Correio aberto.
Despedimo-nos do Neil e “rachamos trecho”, sem nos preocuparmos em fazer o devido aquecimento e alongamento...


Boadilla del Camino - Rollo Jurisdiccional do Século XV, simboiliza o poder jurídico e servia para prender os réus

Eram “só” 6 quilômetros... Logo no começo a Cris começou a sentir o joelho.
Eu estava que era um gás só! Nem as bolhas me impediriam de alcançar o Correio naquele dia, estava determinada. Quando a Cris viu que não dava para ela disse:
- Vá! Tente mantê-lo aberto até minha chegada.
Não pensei duas vezes. Naquele dia eu voei... nunca andei tão rápido. Para mim era uma questão de vida ou morte. Nem pude apreciar as eclusas tão lindas que tem na chegada, fotografei meio “mais ou menos” e pernas para que te quero!
Cheguei, esbaforida, roxa de sol, cansaço, suor, calor e vem um velhinho, na maior gentileza, e me oferece um copo de água. Quase pulei no seu pescoço para beijar-lhe as bochechas.
Expliquei-lhe nossa situação, faltavam 2 minutos para fechar, mas Señor Juan Jose, Juanjo para as amigas brasileiras, disse que não se importava de esperar um “ratito” para ajudar-nos... Quando a Cris chegou eu já estava descansada, com minhas coisas para fora da mochila e Juanjo já estava pegando uma grande caixa para que mandássemos tudo junto (era mais barato! Rs). A Cris fez questão de anotar: despachamos 3,946kg; 2,586 meus e 1,360 dela).

Parêntesis 2: Depois que descobrimos que podíamos mandar nossas coisas pelos Correios, o peso morto entrou em putrefação! Parecia que a cada passo pesava mais e mais... Dois quilos e meio podem parecer pouca coisa, mas carregá-los nas costas, pesam toneladas!

Chegamos ao albergue (5 estrelas) e fomos muito bem recebidas pelas hospitaleiras. Sentia-me muito mais leve, em todos os sentidos.
Havia recado do Mauricio para nós. Ao mexer nas minhas coisas, quando comecei escrever sobre o Caminho, encontrei um papelzinho no meu guia com algumas anotações daquele dia, em específico, acho que Mauricio não vai se importar, se ligar, depois ele briga comigo - rs):

“Frómista - 02/06/2000

Hoje encontramos um recado do Maurício:
Olá Kátia e Cris,
A cada dia mais este Caminho me impressiona. Destino, coincidência, sina, são palavras que nos mostram a vida passo a passo. Hoje falei inglês, sem saber (ou seja, com meu pouco conhecimento) por duas horas com um holandês, Sr. André, o que mostrou que precisamos de apenas boa vontade para nos compreender. Uma vez mais parte de mim fica aqui, gravada na história, que felizmente eu vivi!”

Também deixei minha mensagem para os que viriam depois de mim:

“Fazer “O Caminho” é aprender, com um pouco (às vezes muita) dor, a desapegar-nos de coisas e pessoas. Só somos donos de nosso próprio destino. Está sendo muito difícil, mas, a cada dia, descobrimos novas forças. Com fé chegaremos.”

É isso o que mais me fascina, a fé, a certeza que apesar de todos os percalços haveremos de chegar. Hoje eu testei a minha força de vontade, consegui fazer 6 km em uma hora e dez minutos, sem me exaurir. Cristina tem toda razão quando diz que desconheço a força que possuo, só que às vezes é tão difícil ser forte. Existem momentos em que anseio por colo, como agora, ouvindo essa música (está tocando o Bolero de Ravel) e tão longe das pessoas que mais amo. Mas a decisão é minha. Aos poucos vou descobrindo novas facetas de uma Kátia desconhecida, outras vezes as coisas que faço ou digo me vêm com uma clareza até então oculta (seria meu lado bruxa despertando?)
Amanhã a etapa é mais fácil... apenas 19 km.
Mas temos que nos preparar para o “deserto verde” que nos espera.”

Frómista - Eclusas

Quando retornamos ao albergue, depois de incorporar o papel de lavadeira, ainda bem que não tinha que passar, usava tudo amassado mesmo (rs), e fazermos nossas compras diárias fomos informadas que Toño, de Castrojeriz, estava à nossa procura, pois acreditava que seu cachorro Bernie tinha nos acompanhado até Frósmita. Ficamos sabendo que de vez em quando ele acompanha os peregrinos que leva até o albergue e como no dia anterior ele havia levado-nos até o albergue, tudo levava a crer que era conosco que ele estava. Se foi com a gente, ele era um Agente 007, pois nós não percebemos. O fato é que Toño não nos encontrou, mas encontrou Bernie!
Fomos jantar num restaurante perto do albergue com mais sete brasileiros... A Selma, Telma e Inês, o Paulo (que não tinha melhorado do joelho) e outros um pouco barulhentos para o meu gosto!
Reencontrei Esperanza e Alonso. No meio do jantar, Esperanza se aproxima da minha mesa e pede-me para fazer companhia a Alonso pois ela não estava sentindo-se bem. O que fiz com o maior prazer!

Parêntesis 3: Ainda bem que eu acredito em reencarnação, porque senão seria um problema explicar o amor que sinto por esse menino. Alonso é meu filho mexicano! Esperanza sabe disso, e ainda bem que aceita dividi-lo comigo. Eu o amo tanto, que falo com ele sobre tudo, às vezes até extrapolo quando trata da sua intimidade, só no intuito de querer vê-lo feliz! E ele sabe disso... quando nos encontramos, no caminho e depois, é como se eu reencontrasse um filho que estava a fazer uma longa viagem. Só tenho que agradecer a Santiago por ter sido o instrumento que me fez reencontrar parte da minha família espiritual.


Frómista - Igreja de San Martín


Fomos dormir ao som do carrilhão da igreja em frente, tocando Ave-Maria...

PS: Algumas pessoas visitam este blog, deixam palavras carinhosas, mas não deixam meio de contato. Outras, por não possuírem blog, fico impossibilitada de agradecer publicamente e dizer o quanto todos os comentários são importantes e me impelem a seguir adiante.
Por isso, além dos meus amigos queridos que visito quando posso e que me compreendem a “não-presença” (não é Anderson, já nem vou pagar direito autoral, e todos que estão nos meus favoritos, e que, graças a Deus, é uma lista enorme!), queria deixar um beijo especial para “meu lindinho” Mauricio, minha filhota “estrelinha” Gabi, meu querido Sérgio, minhas amigas de toda hora Lu Barcelos e Kátia C., para a amiga “desvairada” (vide orkut) Magda, minha amiguinha de faculdade Dany Sanches e duas pessoas que gostaria de vir a conhecer: Lis e Thania.
Luz para todos!

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

CASTROJERIZ

HISTÓRIAS, REENCONTROS E UM CÃO
Seqüência Amanhecer - Trecho Hornillos del Camino - Hontanas

Parêntesis 1: A “Santa Cris de Assis” tem alguma coisa, para mim não é humano, que atrai todos os animais que encontra. Principalmente cães. Um dos motivos das muitas brigas entre ela e Mauricio era porque ela dividia sua comida com os cães que a rodeavam e o Mauricio achava o fim aqueles cães vadios por perto...

Parêntesis 2: Gente, não fiquem achando que o Mauricio simplesmente abandonou-nos, ele não foi para Santiago com a gente, quem está acompanhando a saga desde o início sabe que nós nos conhecemos na estação de ônibus de Pamplona e tudo que ele queria era “rachar” uma corrida de táxi. Então, neste ponto (viu Mauricio?) tenho que sair em sua defesa, ele não tinha nenhum compromisso conosco. Tudo que fez foi por amor, doação.

Mas voltemos ao caminho...
Apesar de ter lido muito sobre o que fazer, o que levar, como proceder em determinadas situações, só mesmo conversando com outros peregrinos é que a gente vai descobrindo certas “manhas”. A mais importante para mim foi descobrir que poderia despachar todo o meu peso morto (eu ainda carregava na mochila o tailler da viagem, as botas que troquei, algumas camisas, etc. e que não queria me desfazer desses objetos) para Santiago de Compostela, via correios, que ficaria numa “posta restante” aguardando a minha chegada.
Existem pesos mortos que a gente deixa mesmo no caminho sem nem olhar para trás. Mas existem outras coisas que nos serão úteis lá na frente, por isso somos obrigados a suportar a carga!
É igualzinho à nossa vida, com a diferença que tem gente que carrega todo o peso morto, por todo o tempo...
Então saímos cedinho de Hornillos para chegarmos a Castrojeriz a tempo de despacharmos nossas coisas.

Hontanas
Em Hontanas nem pudemos apreciar bem a paisagem. Comemos um sanduíche velho (não tinha nada aberto ainda), suco de caixinha e como digo: “rachamos trecho”.
Chegamos cedo em Castrojeriz, antes da hora do almoço (para nossos padrões). O albergue ainda estava fechado. Deixamos nossas mochilas empilhadas a outras na recepção e saímos em busca do Correio. Mas as forças contrárias também conspiram no Caminho... o correio estava fechado.

Parêntesis 3: Mão tentem entender o funcionamento dos órgãos governamentais da Espanha... Nós chegamos ao Correio por volta de meio dia, um rapaz de uma loja ao lado disse que já havia aberto (às 10 mais ou menos) e fechado, e que talvez abrisse à tarde, às vezes não... Não existe um horário determinado. Cada agência abre e fecha de acordo com o sono e o humor do funcionário. Aquele dia parece que o funcionário não estava de bom humor, pois o correio não abriu mais.

No que estávamos esperando, eis que aparece meu querido amigo Marco Pingret, também querendo despachar algumas coisas... o que também não foi possível. Porém Marco trazia a notícia que havia passado pelo bar do Toño e que havia uma mensagem do Mauricio para nós. Fui correndo até lá e realmente havia uma nota no livro dizendo que estava tudo bem e incentivando-nos a continuar.
Marco despediu-se e foi em frente.

Parêntesis 4: Despedir! Outra coisa difícil! Como é difícil para eu deixar que os outros partam... Foi com lágrimas nos olhos que vi Marco indo embora. Pressentia que nunca mais iríamos ver-nos, pois o ritmo dele era muito, muito melhor que o nosso. Então, estava fora de cogitação voltarmos a nos ver. Esta partida doeu-me o coração. Meu coração sabe escolher. É muito criterioso. Só se apega a quem realmente vale a entrega. Marco vale cada lágrima de adeus e todos os sorrisos que compartilhamos.
Trecho Hontanas - Castrojeriz, ruínas do Convento de San Antón
Voltamos ao albergue. Uma festa! Em frente se encontravam Orlando e Micheline, Rosa e Angeles (Rosa é das ilhas Canárias e estava fazendo o caminho com sua irmã, que sofreu uma trombose na perna, perto de Estella, e teve que desistir, sua filha Angeles, um doce de pessoa, para não deixar a mãe só, tirou férias e veio terminar o caminho em sua companhia. Partilhamos ótimos momentos juntas.), Pedro “O Grandão”, Sir Lancelot, Jose Maria “O Escritor” e outros mais.
A Rosa estava a ponto de parar tamanha era a dor que sentia no pescoço e costas. A Cris resolveu dar uma aula de Yoga em plena rua! Foi demais! Começamos ela, eu, Rosa e Angeles. Aos poucos os outros foram aderindo, no final estávamos todos os peregrinos fazendo exercícios para alívio das dores. A aula terminou em aplausos e emoção.
Estava armando a maior tempestade... ventos fortes, trovoadas... A Rosa disse que vinha uma tormenta. Como eu não sei o que é tormenta para eles, tratei de me abrigar. Porém só tinha aquela saletinha... então era mochila empoleirada de um lado, peregrino de outro, uma balbúrdia!
Nisto chega Resti, o hospitaleiro, super simpático. Um grande homem, em todos os sentidos, atrás de sua barba branca (uma mistura de São Pedro, com Papai Noel) e colocou-nos para dentro.
O albergue é dividido em pequenas “baias” com dois beliches cada e Resti é quem decide onde cada um vai ficar... Eu e Cris ficamos com O Grandão e Sir Lancelot. A Cris, amiga de todas as horas se prontificou a ficar na parte de cima do beliche (eu só ficava em cima em último caso, ainda assim chorava...) mas logo acima de sua cama tinha uma espécie de trilho de trem que dava sustentação à casa de dois andares, portanto ela só podia ficar em uma posição, se virasse, dava com a testa no trilho!

Parêntesis 5: Nós vivíamos rindo dO Grandão e seu “para-aguas” (guarda-chuva) que parecia bem encurvado. sobressaindo da mochila... Achávamos estranho, fechado, ainda dizíamos: coisa de alemão. Mas o Caminho e a vida nos obrigam, quase que diariamente a rever nossos “pré-conceitos”. Ele foi super generoso, tentando de todos os modos fazer-se entender, disse que roncava e era só a gente dizer “psiuuuu” que ele parava (e não é que deu certo!). Então conhecemos sua história: ele havia ficado viúvo há 6 meses, desorientado, filhos criados, sem a companheira de toda uma vida, não via mais sentido em nada, resolveu fazer o Caminho em busca da sua essência e aprender a viver só. Como passei a admirá-lo. Só os fortes são capazes de expor suas fraquezas.

Conhecemos Paulo (baiano) e fomos com ele até a farmácia pois ele não conseguia fazer com que entendessem o que ele queria... Ficamos conhecendo também o Valentim, um jovem, fora do seu tempo, tipo hippie anos 70, e sua cadela, que ele viu ser maltratada pelo dono e adotou. Ele fica nos albergues quando os hospitaleiros deixam, pois não possui credencial, acha que papel não é importante e é proibida a presença de animais nos albergues. Tranqüilo, simpático, ajuda as pessoas no trabalho do campo, fala várias línguas e sobrevive do que os outros peregrinos lhe dão.

Consulado Brasileiro "La Tarberna" - Eu, Toño, Cris e Maria Jesus

Fomos jantar em “La Taberna”, bar-restaurante do Toño e Maria Jesus, dois apaixonados pelos brasileiros e pelo Brasil. O Bar é uma espécie de Consulado Brasileiro, os outros peregrinos até reclamam, que brasileiro é tratado com distinção especial, e é mesmo. Toño logo abriu uma garrafa de vinho “La Rioja” (dizem que só aos brasileiros serve este vinho). O restaurante estava quase deserto, numa mesa ao lado estavam Sir Lancelot, O Grandão, Sr. Escritor e Izaskun, sua esposa, que havia chegado. Em outra mesa, nós duas, e mais ninguém.
Comemos uma salada e uma carne fantásticas!
Cantamos músicas brasileiras para todos, foi uma festa (depois de tomarmos a garrafa de vinho toda era capaz até de dançar sobre a mesa – rs). Tiramos fotos, demos umas notas de dinheiro brasileiro (que ele coleciona numa parede do bar) e no final ficamos sabendo que eles não atendem para jantar. Que tinham aberto porque o Sr. Escritor havia encomendado um jantar por causa da presença da esposa e que eles haviam compartilhado suas refeições conosco! Emocionante... e ao final, ainda não cobraram o vinho: “cortesia às brasileiras”.
Quando nos despedimos, Toño chamou Bernie, seu cão pastor alemão e ordenou-lhe que nos levasse até o albergue.

Cris e Bernie, à esquerda o Albergue de Resti

E não é que o cachorro levou mesmo! Até ganhei um beijo, só que ele não queria voltar para casa... queria entrar no albergue, foi difícil convencê-lo que não era peregrino!
Fomos dormir alegres (um pouco demais!)

Parêntesis 6: É triste saber que ainda existem pessoas onde o mal predomina. Tempos depois fiquei sabendo, via “rede peregrino”, que o Bernie havia morrido envenenado. Foi muito triste, era um cão que só fazia o bem e trazia alegria para todos... chorei muito, ainda mais quando dei a notícia à Cris!
Porém ano passado fiquei sabendo, pela mesma rede, que Toño já tem outro cachorro, que se chama Dali.

PS. Se alguém for ao Caminho, passar por Castrojeriz, não deixe de parar em La Taberna. É um pedacinho do Brasil na Europa. E não esqueçam de dizer a Toño e Maria Jesus que lhes amo e mando beijos!

domingo, 5 de outubro de 2008

DE CAMINHOS E ABANDONOS

Maga Patalógica e Madame Min


Quando estávamos planejando nosso Caminho, eu e Cris havíamos programado passar por Burgos e seguir até Tardajos, 8,6 km. adiante, porém, em virtude do estado precário dos meus pés acabamos ficando em Burgos o que comprometeu nossa programação que seria, no dia seguinte, seguir até Castrojeriz. Como eu não conseguiria andar muito, decidimos ir até Hornillos del Camino, uma caminhada de 18,3 km, considerada de esforço mediano.
Sir Lancelot ainda perguntou onde ficaríamos e disse que também iria ficar lá.
Despedimo-nos com o costumeiro “Buen camino, peregrino!” e seguimos.
O dia estava frio... mas já estávamos nos acostumando e aprendendo a decifrar o tempo, sabíamos que logo o sol sairia e que seria um lindo dia.
O Mauricio estava um pouco calado... mas no caminho todos temos nossos momentos de introspecção, então, ninguém fica indagando ao outro o que passa. Apenas respeitamos.
Paramos em Tardajos para nos abastecer, pois pela informação do guia em Hornillos não teríamos opções de “tiendas” para abastecimento.
Cristina lembra que no alto do morro nós paramos para ouvir o silêncio e apreciar a linda paisagem. Ao longe cantou um cuco...
Chegamos cedo a Hornillos e logo no início do “pueblo” vimos uma vassoura, daquelas de bruxa... eu que adoro bruxas (tenho inclusive uma tatuada) não pensei duas vezes, montamos na vassoura, às pressas para que não aparecesse a verdadeira dona, e Mauricio tomou-nos uma foto!
Surpresa: Já tinha restaurante na cidade! Apenas um, mas tinha.
Fomos até o restaurante, bebemos umas claras (cerveja com limão, eu acho!) e então Mauricio comunicou que seguiria em frente.
Sem grandes despedidas ele se foi.
Chorei bastante. Tentei entender porque ele estava indo, mas não conseguia.

Parêntesis 1: Quando eu fui fazer o Caminho estava passando por um momento muito difícil da minha vida. Meu coração, minha vida, tudo... haviam sido feito em pedaços. Estava tentando colá-los, como mosaico, mas ainda haviam muitas peças soltas. O abandono era uma coisa que, sinceramente, não sabia lidar.

Parêntesis 2: Abandono – Um capítulo a parte:
Toda a minha vida eu tive que ser forte. Nunca fui “A mais” nada! Nunca a mais bonita, nunca a mais popular, rica? Nem em pensamento... Daí eu precisava, até como auto-afirmação, me destacar de alguma maneira. Tornei-me uma leitora voraz, aguçando minha inteligência. E me fiz forte. Então passei toda a vida ouvindo, quando tinha alguma dificuldade: “você supera, você é tão forte!”. Eu não tive chance de depender nunca de ninguém. Era sempre eu, comigo mesma. Daí, eu fui me fechando para não sofrer... só deixava aproximar pessoas que sabia que jamais me abandonariam, porque o abandono exigiria uma força maior do que a que eu possuía. Quando ocorreu o primeiro grande abandono da minha vida, fiz-me em pedaços.
No Caminho, talvez por ser uma lição que eu necessitasse aprender, de repente, me vi dependente do Mauricio. Aceitava que ele tomasse as decisões. Era tão bom ser o elo mais fraco! Eu estava experimentando uma coisa que não conhecia... mas ao mesmo tempo, estava anulando-me...

Hornillos del Camino - Igreja, varanda onde os peregrinos se reúnem e também estendem roupas
Quanto o Mauricio se foi, a Cris me disse uma porção de coisas, essas mesmas que eu disse aí em cima, fazendo-me ver que eu não estava trilhando o meu caminho, que precisava retomar minha vida. A verdade às vezes dói. Mas só os verdadeiros amigos a dizem.
Sentamo-nos na varanda da Igreja, já que o albergue ficava ao lado, e eu fiquei avaliando as novas bolhas que haviam surgido, apesar dos tênis e das meias novas... e chorava!
Sir Lancelot já havia lavado roupa, então juntamo-nos e fizemos nossos planos para o dia seguinte: seguiríamos até Castrojeriz.
Fizemos novas amizades: Amauri e Sandra, de Curitiba, Javier – chileno e a Marie Louise – francesa, mas aquele dia eu não estava para muita conversa. Tinha muitas feridas a lamber.
Fomos jantar (no único restaurante) e chegamos cedo demais... tomamos uma cerveja, e outra, e outra mais e eu desabafava com a Cris todas as minhas dores, inclusive a pior de todas, pois estava sentindo-me traída pelo Mauricio (coitado! Ele não tinha responsabilidade nenhuma... mas é como aquela história da raposa do Pequeno Príncipe: a gente corre o risco de chorar, quando se deixa cativar)...
Tive a chance de travar conhecimento com Jose Miguel, um jovem senhor e seu inseparável caderno, que nunca ousei olhar o que continha. Ele seguia o caminho solitário, estava sempre a escrever ou desenhar, tinha o olhar mais doce do mundo, a barba grisalha, e eu senti por ele uma empatia muito forte. Às vezes sua esposa vinha encontrá-lo no Caminho, depois voltava para sua cidade...
Pois bem, o resultado daquela noite, das lágrimas vertidas, do abandono mal resolvido, da tristeza que me abateu: foi um grande pileque que me fez ficar acordada quase que a noite toda, porque o beliche rodava toda vez que eu fechava os olhos. Então os mantinha abertos!
Rendeu também um poema:
ENCRUZILHADA

Encontrei você parado
Numa curva do meu caminho
Vinha eu tão só,
Estava você tão sozinho.

Foi como se acendesse uma estrela
No meu céu que andava nublado
E por um tempo nossos caminhos
Seguiram lado a lado.

Você enxugou minhas lágrimas,
Levantou-me quando caí,
Incentivou-me a seguir adiante
Consolou-me, quando sofri.

De repente, o amigo querido
No qual havia se transformado
Resolveu seguir adiante,
E fiquei sozinha na estrada.

Como disse o Poeta Maior:
“O poeta é um fingidor”
Achei que podia enganar
Escondendo de você minha dor,

Enquanto meu coração
Tentava decifrar esse sentimento
Vi você se afastando
Aos poucos, na trilha, ao vento.

E quando a dor passar,
Depois de você ter ido embora
Tentarei lembrar com um sorriso
O que lágrimas, me traz agora.

(Hornillos del Camino – 31/05/2000)

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

AINDA FALTAVAM MAIS DE 500 KM.

NÃO SEI O QUE É PIOR: DOR DO CORPO OU DOR DA ALMA

Trilha - Chegando a Agés
Saímos de San Juan cedinho.
A Cris continuava em “estado de graça”, parecia ter asas nos pés, enquanto eu só tinha bolhas e mais bolhas. Ela acelerou o passo, cantando a plenos pulmões, feliz! Mauricio – sempre ele – ficou para trás comigo. Eu não consegui imprimir um bom ritmo, meus pés doíam horrores. Quando pensava que seriam mais de 27 km muitas vezes pensei que não sobreviveria.
Passamos por Agés, Olmos de Atapuerca, Cardeñuela-Riopico... a cada passo parecia que fincavam lanças nos meus pés. As lágrimas escorriam, de tanta dor. Eu parava, passava analgésico, trocava as meias. Meio quilômetro adiante a dor voltava com maior intensidade.
Nesse dia Mauricio usou de toda sua paciência (e olha que ele nem tem tanta! e carinho para comigo), não me abandonou um momento sequer, incentivava... e eu respirava fundo e seguia, só Deus sabe como.
Trilha - Agés - Olmos de Atapuerca

Alcançamos a Cris em Orbaneja, refestelada embaixo de uma árvore. Avisamos que íamos almoçar em Villafría, próxima cidade, porque sabíamos que a chegada a Burgos era difícil.
A verdade mesmo é que eu não agüentava dar mais nem um passo e qualquer motivo para parar era bem-vindo... nem fome eu tinha!
Seguimos juntos até Villafría, paramos para almoçar, descansamos um pouco e empreendemos nosso curso.
Só que a cidade não acabava... não se sabe onde termina Villafría e onde começa Burgos. São quilômetros e mais quilômetros do que pareceu ser uma zona industrial, intermediada de bairros residenciais simples, uma avenida sem fim, trânsito pesado, calor insuportável, mal sinalizada, pessoas mal educadas.

Parêntesis 1: Quanto menor a cidade, mais educadas e prestativas são as pessoas. Quanto mais humildes, mais puros de coração. Conclusão: a educação não acompanha na mesma proporção do crescimento das cidades.

Ninguém dava uma informação de onde deveríamos seguir para chegar ao albergue.
Não havia uma bendita seta amarela em lugar nenhum. Se havia, a dor era tanta que eu não conseguia enxergar.
Em um dado momento, não resisti. Parei, saquei as botas, meias, curativos, tudo e calcei a minhas confortáveis sandálias Havaianas...

Chegada a Burgos - Rindo para não chorar (detalhe para as Havaianas)

Só assim, depois de perdidos nosso bom humor, nossa paciência, nossa resistência que atravessamos toda a cidade de Burgos. Quando digo toda, é toda mesmo, de cabo a rabo.
O albergue fica num parque belíssimo, na saída da cidade... São (ou eram) uns galpões de madeira, parecidos com alojamentos de exército, mas muito limpos, camas confortáveis, tinha até cobertores e travesseiros! Tinha banheiros separados para homens e mulheres!

Parque de Exposição de Peregrino

Parêntesis 2: A maioria dos albergues o banheiro é compartilhado por todos. Nós colocávamos o Mauricio para vigiar e fingir que o banheiro estava cheio, quando estávamos usando-o, para ter maior privacidade... Na vez dele, desaparecíamos! (A Mariana vai dizer: Coitadinho do Mauricio - rs)
O parque também era muito bonito, árvores grandes, muita paz, gramado e mesas com bancos de madeiras espalhadas.
Eu, depois do banho, sentei-me num banco e num ato de desespero comecei a furar todas as bolhas, eram tantas que perdi a conta. Furava e chorava... A Marie Jô, canadense que estava com a filha, quis me emprestar suas botas reserva. Não aceitei, claro! Mas estava desesperada... Não sabia mais o que fazer.
Daí decidi que ia até a cidade comprar um par de tênis novos para ver se melhovara. Implorei ao Mauricio para ir comigo... ele foi, claro! Escolhemos uns tênis bem confortáveis, sem costura, meias novas também sem costura...

Burgos - Catedral de Fernando el Santo

Parêntesis 3: Fomos e voltamos de ônibus!

Reencontramos Orlando e Micheline... nossos queridos amigos franco-italianos, o Anthony (vulgo Sir Lancelot) e o Pedro (alemão que carregava um enorme guarda-chuva e bebia um litro de leite por refeição)!
Pela primeira vez encontramos peregrinos cavaleiros... a trilha é diferente, mas alguns albergues coincidem.

Parêntesis 4: Senti-me como uma macaca de circo! O Parque onde está localizado o albergue é aberto ao público e as pessoas vão visitar, passear, correr, etc. Mas tem gente que vai para “ver Peregrino”. Pode? As mães apontam para as crianças: ali um! Êta vontade de partir para ignorância. Mas respirei fundo e sorri... igualzinho uma macaquinha adestrada... só faltou o amendoim!

Jantamos ali mesmo, ao ar livre, tipo pic-nic - éramos as atrações principais, que tivessem o espetáculo completo!

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

EU AINDA ACREDITO


O Jorge Vercilo tem uma canção, Em Tudo que é Belo, em que ele diz que acredita em uma série de coisas nas quais os homens, por opção, por comodismo, por inaptidão, não mais acreditam. Eu adoro essa canção que diz, entre outros versos:

“...Eu ainda acredito
num futuro mais bonito,
que o novo é bem-vindo
e o amor é infinito.
eu ainda acredito
que nem tudo está perdido,
que o sorriso é sagrado
e aqui é o paraíso
e que tudo estava errado
sobre o dia do juízo.
Eu ainda acredito
no carinho invés do grito...”

Pois é, como o autor eu também acredito.
Acredito que os bons são maioria, só não aparecem porque o bem não é notícia.
Acredito em pessoas que fazem o bem só pelo prazer de ver a felicidade alheia.
Acredito que existem sim, os puros de coração.
Creio em gente que tem olhar franco,
Que confia, se entrega, ajuda,
Que não mede esforços e conseqüências.
Acredito em quem já sofreu,
Porque são capazes de reconhecerem seus semelhantes.
Acredito em gente assim não porque seja otimista
Ou viva fora da realidade,
Mas porque sempre me deparo com criaturas desta raça...
E eles têm nome e casa e voz.
O que têm de mais?
A capacidade inesgotável de amar!
A última que me cruzou o caminho
Atende, carinhosamente, por Layla Lauar.


Aqueles que convivem comigo mais amiúde sabem que sempre digo que Deus é generoso demais para comigo, não que Ele me proporcione só felicidade, bens materiais ou tantas outras coisas que sei são necessárias, mas não as mais importantes, também tenho minha quota de dor. Deus é generoso nos anjos que espalhou pelo meu Caminho. Acredito que quando estava para nascer, Ele foi espalhando anjos por todas as etapas da minha vida e, quando eu mais necessito, eis que me aparece um... Tem sido assim desde a infância... No Caminho de Santiago, minha saga atual, Mauricio foi meu anjo. A Cris não conta porque digo que sou seu karma! Mas foram muitos ao longo da vida.

Deu-me filhos-anjos, amigos-anjos, amores-anjos.
Tenho anjos em abundância e eles não se vão. Aparecem e permanecem.
A Layla foi o anjo que fez este cantinho ficar bonito deste jeito que vocês estão vendo.
Anjo Layla, meu abraço, meu agradecimento, meu carinho e que Deus siga iluminando seu caminho para que você continue espalhando sua luz por onde passa.