terça-feira, 30 de setembro de 2008

A MENINA E SEU CÃO

RÉQUIEM PARA THUNDER


Desde pequena seu sonho era ter um cachorro.
A mãe dizia que não e elencava os motivos: cachorro não combina com apartamento, quem vai cuidar?, você ainda é muito pequena para tanta responsabilidade, e a minha alergia? etc... e prometia: quando mudarmos para a casa dos nossos sonhos você poderá ter seu cachorro!
Mas a casa e o sonho e o cachorro estavam tão longe!
O pai tentava aliviar a falta trazendo animaizinhos para “passear”. A menina teve pintinhos, periquitos, passarinho, peixe, patinho... até um porquinho da índia passou uns dias na casa da menina.
A casa passou do estágio do sonho e começou a transformar-se em realidade.
O cachorro também!
Era necessário escolher com todo cuidado.
Não poderia ser um cachorro qualquer. Tinha que ser especial. E especial não tinha nada a ver com raças e pedigree. Tinha a ver com empatia, alma, encanto.
Optou por um Husky Siberiano. Mas não poderia ser puro. Queria-o com os dois olhos azuis e descobriu que os puros não os tinham.
Um amigo do pai encontrou o cachorro, filhote de dois meses, em Belo Horizonte.
Despachou-o, depois de grande trabalho, de avião...
O pai no aeroporto a esperar o avião que nunca chegava!
Foram três longas horas... tudo esquecido ao ver o brilho do olhar da menina quando chegou em casa e encontrou seu cão pela primeira vez.
Já tinha nome: Thunder.
Mais desapropriado impossível. Pois nos primeiros meses acreditava-se que era mudo, ou surdo, ou as duas coisas, pois não emitia sons. Tinha medo de tudo e todos que não fossem aqueles restritos ao ambiente da casa.
A menina estava no céu.
Que importava se o cachorro não latia?
Que fosse medroso?
Era lindo, era dela e os dois se entendiam às mil maravilhas.
Com certeza foi ele quem ouviu seus segredos mais secretos. Foi com ele que chorou suas lágrimas mais sofridas. Foi ele quem a consolou, quem a acalentou, quem mais a amou.
Amor incondicional.
Sabia quando estava alegre e correspondia com seus pulos desajeitados.
Percebia sua tristeza e encostava de mansinho nas suas pernas...
Poderia dizer que era quase um ser humano, se ser humano fosse elogio!
Era, para a menina, seu companheiro, seu amigo.
A menina era para ele sua fonte de afeto, alegria, certeza de segurança.
Os anos passaram... quatorze ao todo.
O cão envelheceu e adoeceu.
A menina, agora mulher, entristeceu de dar dó.
Tudo fez. Na última semana, tendo viagem inadiável já agendada, pediu ao amigo:
- Não parta na minha ausência. Espera-me voltar...
Ele, num esforço sobrenatural superou duas convulsões na sua ausência.
Estava em pé quando ela chegou.
E brincou, e bateu com as patas no chão, e lambeu-lhe as mãos e beijou-lhe o rosto...
Depois partiu...


segunda-feira, 29 de setembro de 2008

RUMO A SAN JUAN DE ORTEGA


San Juan de Ortega


Parêntesis 1 – Como ainda não consegui fazer com que meu dia tenha mais que as 24 horas normais, preciso optar, ou atualizo o blog, ou visito-os... Desta vez vou atualizar... espero que compreendam, com diz meu querido amigo Anderson Meireles, “... Se estou "não-presente" aqui, não significa que estou ausente.”

Para variar não tínhamos comprado comida para o café da manhã. Tudo por conta do La Rioja da noite anterior. Pois bem, estávamos outra vez na mesma situação: domingo, tudo fechado, sem comida, com fome!
Quando levantamos vários peregrinos já tinham saído, pois era uma caminhada de 24 km, com muitas subidas...

Parêntesis 2 – Tinha um alemão, com perdão da má palavra, mas o homem era um “bundão”! Não se relacionava com ninguém, espaçoso e se não me falha a memória foi o mesmo que a Cris viu nu, então o adjetivo cabe em todos os aspectos (rs) e quando chegamos a Belorado demos de cara com ele, na mesma hora eu falei: Não mereço! Mas...

Pois bem, quando vimos que não tínhamos comida eu comecei a “garimpar” e descobri que o dito cujo havia deixado uma sacola amarrada à cama, com um pão daqueles bem grandes! Não pensamos duas vezes, pegamos um resto de requeijão da mochila do Mauricio, umas “mermeladas” que eu tinha e fizemos nosso desjejum pedindo a Deus para aquele alimento não nos matasse. Requeijão passado, geléia aberta fora da geladeira, pão impregnado sei lá de que energia... Mas aprendemos mais uma lição: às vezes a mão que nos alimenta é a mesma que nós rechaçamos. Sentimo-nos gratos, e envergonhados por termos alimentado tanta antipatia pelo alemão. Mas isso não o transformou em santo não, ele tinha mesmo um jeito muito esquisito...
Quando pegamos a trilha fazia muito frio. Ventava horrores.

Tosantos - Ermida de La Virgen de La Peña

Passamos por Tosantos. Da trilha se avista uma Igreja que foi construída no que parece ser uma gruta. Uma visão fascinante! Ermita de La Virgen de La Peña. Não sei como se chega até lá, mesmo porque parece ser longe.
Seguimos por Villambistia, Espinosa Del Camino até Villafranca Montes de Oca. Muita água, barro, ovelhas, fedor de “mierda de vaca”...
O frio doía na alma.

Tosantos - Ovelhas e cia

Meus pés já estavam em petição de miséria. Só tinha vontade de chorar... Sentamos à porta da igreja, quais pedintes, eu e Maurício, e eu fiquei a lamber minhas feridas. A boa alma da Cris saiu em busca de alguma coisa para comermos...

Villambistia

Preparamo-nos para enfrentar os Montes de Oca. São montanhas de pinheiros, algumas bem íngremes, que tornam a caminhada, para mim, que do quadril para baixo era só dor, um tanto difícil. Mas o lugar é lindíssimo.

Parêntesis 2 – Tinha um rapazinho, devia ter uns 20 anos, o Phillip, que sempre quando a gente estava saindo do albergue ele estava acordando... Quando nós menos esperávamos, no meio do Caminho, ele aparecia do nada e passava pela gente feito um furacão. Daí, toda vez que ele passava, nós começávamos a cantar o tema de Carruagens de Fogo, ele dava uma boa gargalhada e seguia. Era uma linguagem só nossa.

Villafranca Montes de Oca


Pois bem, íamos nós pelos Montes de Oca e, eis que de repente, eu avisto o Phillip recostado nuns sacos de feno. Faço sinal para a Cris ficar caladinha e chegamos de mansinho sem que ele percebesse. Quando estávamos a uns dois passos dele, começamos a cantar Carruagens de Fogo e saímos correndo, e rindo. Havíamos ganho uma!
Chegamos a San Juan de Ortega, que só tem a igreja, o albergue, a casa paroquial, um bar-restaurante, uma fonte e? Mais nada... Ah! Tinha o Padre José Maria, figura lendária do Caminho, que oferecia sopa aos peregrinos, mas que não conhecemos pois estava viajando, e que agora não vamos mais conhecer pois desencarnou.

San Juan de Ortega

O albergue é muito bom mas só tem água fria. Foi preciso tomar umas três “cañas” ou cerveja, sei lá, para enfrentar o gelo da água aliado ao gelo da temperatura.
A Cris negociou com o Maurício para ele levar sua mochila (o albergue fica num prédio) e ela lavaria algumas peças de roupa para ele.
Fomos para o poço, na verdade um grande tanque de pedra, retangular, fundo, em frente ao albergue, em plena rua, lavar as roupas. Com todo o meu jeito para esses serviços, deixei o sabonete cair dentro do tanque, tentamos pescá-lo com uma vara, ele espatifou em vários pedaços, a Cris me emprestou o dela, deixei cair também... uma loucura! Roupas lavadas, estendemos ali mesmo, em uns varais dispostos entre as árvores e tomamos mais umas cervejas para ver se a roupa secava mais rápido.
Eis que chegam Esperanza e Alonso. Alonso caminhando e Esperanza já de carro, alugado, pois não mais conseguia caminhar... Conversamos um pouco e eles seguiram adiante.
Quando a Cris chegou ao albergue, encontrou o Phillip andando com muita dificuldade... o tornozelo todo inchado! Aí encontramos a explicação por termos conseguido ultrapassá-lo. Ele estava machucado, e nós, egoístas, no afã de “aparecermos” não pensamos nesta hipótese. Com muito custo conseguimos nos comunicar e a Cris ofereceu-lhe uma massagem... cuidamos do pé dele direitinho, com direito a antiinflamatório, imobilização, recomendação de repouso e um pouco de alívio de nossas consciências.
Fomos jantar no restaurante – único – e eis que surge Sir Lancelot. Conversamos um pouco, naquela linguagem universal dos sinais e dos bêbados... descobri que ele se chama Anthony e trabalhava na BBC de Londres (lá se foi nossa teoria do espião – rs).
Como não sou acostumada a beber, o álcool subiu diretinho para a cabeça e eu fiquei rindo à toa.
O Lindinho (é esse o apelido do Mauricio, porque ele é mesmo uma pessoa linda!) ficou andando comigo para cima e para baixo, na trilha, até eu me sentir melhor e poder ir para o beliche sem ele ficar se movendo...

Dica: Neste restaurante eles servem uma comida que dizem ser típica, parecendo uma lingüiça, só que preta que nem chouriço... e é muito ruim o gosto. Portanto, por mais que insistam, declinem o convite para experimentar... o intestino agradece!

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

PORQUE MEU DIA NECESSITA DE 36 HORAS...


Por conta do acúmulo de compromissos assumidos, estou sem tempo para escrever... ao mesmo tempo, custa-me abandoná-los... Cheguei a um meio termo.

Vou deixá-los com a bela "Cantares", canção do espanhol Joan Manuel Serrat inspirada nos famosos versos de Antonio Cipriano Jose María Machardo y Ruiz, poeta modernista espanhol:

"Caminante, no hay camino, se hace camino al andar."

Monumento ao Peregrino - Estrada Viana-Logroño



Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre el mar.

Nunca perseguí la gloria,
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles,
ingrávidos y gentiles,
como pompas de jabón.

Me gusta verlos pintarse
de sol y grana, volar
bajo el cielo azul, temblar
súbitamente y quebrarse...
Nunca perseguí la gloria.
Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.

Caminante no hay camino
sino estelas en la mar...

Hace algún tiempo en ese lugar
donde hoy los bosques se visten de espinos
se oyó la voz de un poeta gritar:
"Caminante no hay camino,
se hace camino al andar..."

Golpe a golpe, verso a verso...

Murió el poeta lejos del hogar.
Le cubre el polvo de un país vecino.
Al alejarse, le vieron llorar.
"Caminante no hay camino,
se hace camino al andar..."

Golpe a golpe, verso a verso...

Cuando el jilguero no puede cantar.
Cuando el poeta es un peregrino,
cuando de nada nos sirve rezar.
"Caminante no hay camino,
se hace camino al andar..."

Golpe a golpe, verso a verso.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

PARA AGRADAR A TODOS: "A SAGA SEGUE SEU CAMINHO" OU "O CAMINHO SEGUE SUA SAGA"

APRENDER A COMPARTILHAR, COMO É DIFÍCIL

Marco da Divisa das Regiões La Rioja e Burgos


Não havíamos comprado muita coisa, daí tomamos o café no albergue, pão com um restinho de patê e um resto de suco que a Marie Jô havia deixado para trás. Marie Jô é uma canadense que viajava com a filha adolescente e com quem eu me comunicava só pelo olhar... uma coisa incrível! A gente se compreendia sem falar uma só palavra, mas naquele dia nós estávamos nos vendo pela primeira vez, eu percebi que ela ia embora, que deixava o suco para trás, e como não sou boba... passei a mão no suco. Pirão pouco o meu primeiro! Mesmo porque eu havia passado uma experiência não muito boa com comida e ainda não havia aprendido sobre compartilhar.

Parêntesis 1 – A Cris havia descoberto no supermercado um potinho, desses parecidos de iogurte, com arroz doce. Eu amo arroz doce! Então comprei um potinho, duas bananas e a inevitável barrinha de chocolate, que seria o meu lanche do dia. Paramos para lanchar, minha boca salivava de tanta vontade de comer o tal do arroz, nisso passa uma francesa, a Barbie, eu, por educação, convidei-a a lanchar, ela não só aceitou, como pegou o pote de arroz, que eu só tinha dado uma colherada, e comeu todinho... Eu fiquei para morrer ou para matar. Quando terminou, agradeceu, despediu e foi embora. Gente! Solidariedade nessas horas não dá certo! Que vontade de pegá-la pelos cabelos! Daí falei pra Cris, revoltada, que ela tinha comido meu arroz, que falta de educação... no que a Cris retrucou, no maior estilo Zen:
- Se não queria compartilhar, para quê ofereceu?
- Ora, por educação!
- Então nunca mais faça isso. Nunca faça nada por educação, faça o que seu coração realmente quer. Você poderia tê-la cumprimentado e só.
E não é que ela tinha razão. Mania besta essa de brasileiro de oferecer as coisas achando que o outro vai responder: Não, obrigado!
Aprendi a lição...

Parêntesis 2 – Eu sei o nome da Barbie mas vou resguardar por educação... Foi a Cris quem colocou esse apelido nela. E na maior cara de pau chamava a mulher de Barbie, na frente dela. Eu, boba que nem só, não compreendia direito, mas passei a chamar a mulher de Barbie também. Até que um dia virei para a Cris e perguntei:
- Cris, porque você chama a fulana de Barbie?
- Sabe aquelas bonecas magrinhas, branquinhas, de cabelo amarelo, que as meninas brincam, brincam, brincam, vão ficando sujinhas, o cabelos perde o brilho, ficam todas desgrenhadas? Sabe aquelas Barbies que as meninas jogam fora? Ela não é igualzinha?
Foi uma gargalhada que durou por muito tempo, toda vez que olhava para a mulher (e olha que nossos caminhos se cruzaram até o final) eu ria e disfarçava.

Pois bem, saímos de Santo Domingo de La Calzada, para uma caminhada considerada fácil, pois havíamos decidido ir só até Redecilla Del Camino, portanto seriam 10 km e meio... só não contávamos com as condições desfavoráveis do clima. Chuva e frio e vento, em quantidade!
Paramos em Grañon, num bar chamado “Cuatro Cantos”, para tomar um café e aquecer-nos um pouco. A dona do lugar, Maria Júlia, é uma fada ou bruxa (do bem). Além de servir a todos, massageou os pés de uma alemã que estava com câimbra, fez-me uma massagem nas mãos que acabou com o meu congestionamento nasal, fez uma massagem com palitinhos na mão do Mauricio cujo resultado não posso confessar, fez massagem na Cris... em suma, ela tinha um carinho especial, de toque, para cada peregrino, além de servir café, chocolate quente, chá, etc. Que vontade de ficar ali... Maria Júlia era amor em forma de gente!
Mas a estrada não sai do caminho, então quem tem que seguir é o peregrino...
Chegamos ao albergue de Redecilha Del Camino e estava tudo vazio. O livro de peregrinos sobre a mesa, com um recado dizendo para sentir-nos à vontade e que o bar abriria às 12 horas. Desfizemos, mais ou menos, nossas mochilas e fomos vistoriar a área... Moscas! Havia moscas para todo lado. Os peregrinos do dia anterior tinham deixado uma sujeira... até panela com resto de macarrão! Varremos e arrumamos tudo, mas decidimos seguir até Belorado, mais 12 km.
Deixávamos a região de La Rioja e ingressávamos em Burgos.

Vista de Belorado - chegada

Chegamos a Belorado e encontramos todos os nossos amigos... só haviam duas camas vagas. O Mauricio, como bom cavalheiro, dispôs-se a dormir no chão. Conhecemos mais três brasileiras, gaúchas, mas eu não lembro os nomes (por enquanto!).
Fomos à missa (nem quando eu era obrigada pela minha mãe, fui a tanta missa na minha vida!) e depois jantamos num pub muito legal, tomamos vinho “La Rioja” (um luxo!), comemos “hamburguesas com papas fritas e huevos”, quase um McDonalds!
Minha vida por um sanduíche de verdade!
Estava mais feliz que pinto no lixo!

Igreja de Santa Maria - Belorado (aquela portinha à direita é o Albergue)

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

INTERLÚDIO - POR AMOR

Anoitecer - Praia da Costa - Vila Velha/ES

Foi amor ao primeiro instante, porque quando ocorreu a primeira vista já era amor.
Viveram intensamente e verdadeiramente o que de melhor este sentimento, aliado à paixão, ao desejo e todas outras necessidades que o amor impõe, pode proporcionar a duas pessoas.
Variantes fizeram com que o que era um só caminho, um só destino, se transformasse em dois caminhos...
O tempo foi passando, ele seguiu seu destino, ela ficou presa a este amor idealizado.
Em nome deste amor cometeu desatinos, ultrapassou limites, sofreu a dor dos abandonados, perdeu a pouca paz que tinha.
Buscou (sobre)viver.
O tempo passou. Ela insistia em viver das recordações, das sensações, da ausência, da falta.
Vivia uma vida pela metade, pois já não era inteira.
Quando, de anos em anos, ele aparecia, ela, em nome de uma amizade que julgava ser capaz de oferecer, separada deste amor que a corroía por dentro, acabava metendo os pés pelas mãos e sempre acabava em mais um abandono, mais uma separação.
Ela juntava seus cacos, seu desejo, sua fome de beijo... e tentava seguir adiante.
Um dia, quando já não havia esperança, já não havia angústia, aconteceu um encontro.
Poderia-se dizer um encontro banal, se banal pudesse ser aplicado a esses dois seres que tanto de amaram (ou se amam?!).
E eles conversaram noite adentro...
Trocaram experiências, falaram de suas vidas, suas perspectivas...
Pouco a pouco ela foi percebendo que ainda havia amor, mas era diferente. Já não existia fome de beijo, já não ansiava por suas mãos percorrendo-a cada íntimo hemisfério, nem sua boca nos seus seios... já não havia desejo.
Havia sublimado o amor carnal.
Quis deitar a cabeça sobre seu peito, como em outros tempos, mas para apenas sentir seu calor... como fazem dois seres que se amam, apenas pela proximidade, pela troca de energia.
Sabia que ainda era amor! Mas era diferente, ela estava diferente.
Então, num lampejo de lucidez, descobriu-se completa. Pela primeira vez bastava-se a si própria.
E livre.
Ainda o amava?
Sim!
Mas cabia ao destino fixar datas e limites...
Já não sofria.
Era inteira.
Era livre,
E se liberdade tem um sabor, para ela era de chocolate recheado com creme de menta.

domingo, 21 de setembro de 2008

PRÊMIO DARDOS - BLOGUEIROS DO MUNDO


Recebi o selo Prêmio Dardos da Vanuza Pantaleão.
Quero agradecer imensamente por ser lembrada desta forma e dizer que fico contente e honrada por ter por perto, neste mundo tão real que é a blogesfera, pessoas tão interessantes e especiais como ela.
O Prêmio Dardos significa o reconhecimento os valores que cada blogueiro mostra a cada dia, seu empenho por transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc. Em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, entre suas palavras
As regras são simples:
a) Aceitar e exibir a imagem do selo no seu blog.
b) Linkar a pessoa que lhe entregou o prêmio.
c) Escolher 5 blogs para entregar o mesmo prêmio.
Escolhi blogs com estilos e assuntos diferentes, mas todos com valores culturais e muita criatividade. Pessoas que escrevem e quando leio, falo para mim mesma, poderia estar falando de mim! Pessoas que admiro, acima de tudo. Assim, segue a minha listinha:
01. Tell Aragão - Por onde andei
02. Nadezhda - Where is my mind?
03. Jorge Elias Neto - O Estalo da Palavra
04. Ilaine Kunz - Baú de Espanto
05. Mariana - Meus casos, minhas neuras...
PS Sei que muita gente já recebeu o mesmo prêmio de outras pessoas. Os indicados que não quiserem passar para frente, fiquem à vontade!

Um grande beijo e amanhã a saga segue seu caminho( ou seria o caminho segue sua saga?...)

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

EM DIREÇÃO A SANTO DOMINGO DE LA CALZADA

Este post é dedicado a Marco Pingret
Catedral de Santo Domingo de La Calzada
O percurso que nos esperava era curto, pouco mais de 15 km, então decidimos dormir um pouquinho mais, afinal Peregrino também é gente! Apesar de às vezes não parecer...
Tomamos nosso café da manhã (desayuno) num restaurante – luxo para peregrino – na companhia de Orlando e Micheline, de quem, a cada dia, aproximávamos mais e mais. No restaurante conhecemos Isabel, uma enfermeira espanhola, que estava fazendo o Caminho por etapas. Como ela não tem tempo, ela junta suas folgas, procura acumulá-las e usufruí-las junto a algum feriado, e, a cada folga, ela percorre um trecho. Pessoa maravilhosa, de uma sabedoria incrível. Caminhamos juntos este trecho. Papo bom, ritmo também, e eis que nos surge, numa casa na estrada, um senhor, já idoso, que ao ver-nos correu a colher rosas vermelhas e ramos de hortelã para nos oferecer. Além da água fresquinha, o Sr. Gregório exalava amor e caridade pelos poros. São pessoas assim que fazem nossos caminhos valerem à pena, seja na Espanha ou aqui. Ele só estranhou um pouco quando comecei a comer as folhas de hortelã... mas estavam tão lindas! Não resisti!
Chegamos muito cedo, antes do almoço, e resolvemos ficar no albergue das Monjas (Irmãzinhas, como logo começamos a chamá-las).

Parêntesis 1 – Santo Domingo de La Calzada é uma cidade muito bonita e cheia de lendas e histórias. A Catedral da cidade está construída sobre o túmulo de Santo Domingo, em estilo gótico. Em seu interior se conserva um galinheiro com uma galinha e um galo, como recordação e veneração ao maior milagre de Santo Domingo. Diz a história que uma família de peregrinos da Alemanha parou para pernoitar na cidade. A criada da hospedaria se apaixonou instantaneamente pelo filho do casal, porém sem ser correspondida, escondeu uma taça de prata em seu casaco e denunciou o rapaz pelo roubo. O jovem foi preso, condenado e enforcado. Os pais, aflitos, continuaram sua peregrinação até Santiago, e, ao regressar encontraram o filho ainda vivo (Santiago fica a mais ou menos 580 km. de Santo Domingo), pois o Santo lhe sustentava o corpo pelos pés. Correram então até o Corregedor da cidade, porém este não acreditou e disse “Teu filho está tão vivo quanto esta galinha que estou comendo”. No exato momento em que disse isso, a galinha retornou ao seu corpo vivo e cantou, de modo a fazer o refrão: “Santo Domingo de La Calzada, onde cantou a galinha assada”. O Corregedor assustado mandou soltar o rapaz, que retornou com seus pais à Alemanha. Desde então, na Catedral, mantém-se um casal de galináceos e dizem ser de bom agouro se eles cantarem quando as pessoas estão no interior da Catedral.
Histórias do Caminho...

Havia festa na cidade e como bons brasileiros logo estávamos prontos para aproveitar a cidade e a festa, embora com os pés em brasa. Uma banda tocava ali pertinho e nós fomos assistir, vestidas de peregrinas (nem vestidinho de liganete tinha rolado!) e quando percebemos, as pessoas estavam vestidas nas suas roupas domingueiras, as crianças com seus vestidos de bolo de noiva, mesmo assim fomos muito bem recebidos por um casal que se aproximou de nós, conversou, se interessou em saber sobre nossa peregrinação.
A festa era a comemoração de aniversário (não sei quantos séculos) do primeiro Albergue de Peregrinos da cidade.
As Irmãzinhas serviam almoço e nós resolvemos comer no convento. Isa permanecia conosco, mas enquanto a Cris se banhava ela se despediu de mim e seguiu seu caminho, sem deixar nome, endereço, telefone... só a certeza de que foi mais uma alma iluminada que cruzou nossos caminhos. A Cris ficou muito triste, mas eu acho que, como ela se identificou muito com ela, não quis mesmo despedidas...
Mais tarde resolvi acompanhar a Cris e o Mauricio à missa. Eles foram comungar e eu fiquei quietinha. Quando eles voltaram e a Cris ajoelhou, não é que o galo começou a cantar? Juro que fiquei toda arrepiada...
A comida das Irmãzinhas era tão boa que neste dia até jantamos! E conhecemos outra pessoa iluminada: Marco Pingret! Sabe aquelas pessoas que você olha e sabe que vai amar pelo resto da vida... foi assim com o Marco. Ele conseguiu até uma foto com a Irmãzinha...

Parêntesis 2 – Tempos depois tive o privilégio de receber Marco e sua esposa em minha casa, junto com a Maria do Socorro e esposo e a Helenice. Tivemos o prazer de fazer “Os Passos de Anchieta” (caminhada realizada todos os anos no ES) juntos.
Deus coloca anjos nos nossos caminhos e muitas vezes, na correria do dia a dia, não damos conta. Daí perdemos uma grande oportunidade de evoluir, de melhorar, de aprender... Tanta coisa aprendi com Marco, com o modo como ele encara a vida e trata as pessoas como verdadeiros irmãos.
A gente não se fala muito, mas não precisa. Acho que isso é amor de verdade. A gente sabe. Só isso importa!
E só quem ama assim se lembra do amigo, no alto do Everest, e de lá traz uma pedrinha porque sabe que o outro tem pedrinhas dos lugares místicos do mundo. Foi esse presente que ganhei do Marco!

Apesar do Convento ser de Irmãzinhas, elas serviram um excelente vinho no jantar... Não sei o que tinha naquele vinho, mas dormi uma noite maravilhosa!

domingo, 14 de setembro de 2008

PARTINDO DE NAVARRETE, RUMO A AZOFRA


Caminho Navarrete - Nájera


Parêntesis 1
O que estava camuflado
Se declarou, enfim
Aliaram-se o Destino e o Tempo
E lutam, diariamente, contra mim.

Saímos cedo, eu e a Cris, o Maurício ficou para trás “arrumando o inconsciente”.

Parêntesis 2 – Toda vez que ele estava meio confuso, ele tirava tudo, tudo mesmo, de dentro da mochila, dispunha sobre a cama, ficava em pé olhando, olhando, até, depois de uma eternidade, voltar com tudo para dentro da mochila. Mas como nada é estranho no Caminho, apelidamos de “arrumar o inconsciente”.

Como seria uma caminhada tranqüila (só 21,9 km, rs), resolvemos ir com calma, mesmo porque meus pés estavam em petição de miséria! Mesmo que quisesse, não conseguiria impor um ritmo mais pesado, meu corpo não suportaria.
Quando chegamos a Nájera, meus pés pediam descanso, cuidado. Então, sentamos num banco da praça, tiramos as botas (e a Cris seguia com a sua Azálea, sem bolhas, quanta inveja! É verdade que ela já trazia umas três unhas roxas!) e fomos cuidar dos nossos pés.
É impressionante como a gente se desprende dos nossos preconceitos quando estamos no Caminho. Numa situação “normal” eu jamais ousaria tirar sequer os sapatos em público, quanto mais abrir a mochila, sacar tesourinha, linha, agulha, remédio, etc. e colocar os pés para cima e tratá-los. Fiquei pensando nas infinitas vezes que devo ter presenciado uma cena parecida e ter julgado imprópria, sem, ao menos, considerar as necessidades, as dores, os motivos da pessoa em questão. Este quesito, de me colocar no lugar do outro antes de tecer um “pré-julgamento”, acho que foi uma das lições mais bem aprendidas. Às vezes é bom estar do outro lado da moeda!
Quando chegamos a Azofra, o Mauricio já havia chegado (deve ter passado por nós quando estávamos em Nájera e teve vergonha de parar! Rs)
Eu esperava ser recebida por Maria Tobia, outra personagem lendária do Caminho. Alma iluminada que cuida de todos e sobre quem já havia lido bastante. Porém fomos recebidas pelo Daniel. Achamos que ele era o hospitaleiro de plantão. Acomodamo-nos; o albergue é muito simples, a cidade minúscula, só tem uma vendinha, uma rua, um restaurante, uma igreja, tudo um...

Azofra - Altar-Mor da Igreja

Mais tarde ficamos sabendo que o Daniel era o Peregrino que havia ficado perdido em uma nevasca no ano anterior. Vimos os recortes de jornal que dizia ser mais um milagre de Santiago sua sobrevivência, encontrado quase morto por um morador local, perdido na trilha. Ele havia retornado a Azofra para terminar de escrever um livro narrando sua história e estava trabalhando como voluntário no albergue.
Mais tarde chegou Maria Tobia! Fizemos a maior farra! Ela dizia a todo instante que adora os brasileiros, etc e tal. Mauricio e Cristina, depois dos afazeres diários (lavar roupa, fazer compras, almoçar, etc) insistiram para que eu escrevesse alguma coisa especial (como se eu tivesse botãozinho liga-desliga) para a Maria Tobia!
Resolvemos comer no próprio albergue, no jantar. Daí chegaram os franceses folgados e barulhentos e quase não sobra espaço para mais ninguém... a duras penas conseguimos conquistar um cantinho da mesa, onde jantamos sopa, pão com patê e vinho.

Parêntesis 3 – Não é porque a gente resolve fazer o Caminho de Santiago que como num passe de mágica, de um dia para o outro, todos nos transformamos em anjos. Levamos conosco nossas más tendências, mas a maioria leva, também, a disposição de aproveitar esse momento de reflexão, de introspecção, para vencer essas más tendências. Mas tem gente que nem que se desse a volta ao mundo a pé resolveria. É o caso desses franceses que acham que o mundo foi feito para eles. É o caso da maioria dos brasileiros que descobriram, à época, uma maneira de fazer turismo barato na Espanha, então, tudo neles era demais: falavam demais, alto demais, sem noção demais, intrometidos demais, oferecidos demais, tudo demais... desses procurávamos distância! Havia também a questão da simpatia e antipatia, na maioria das vezes, gratuita, porque como não conhecia a pessoa como justificar o fato de gostar ou não dela? O caso mais gritante foi de dois australianos, o primeiro, o Bambi (um gay, mas eu não sou preconceituosa, mas o apelido é porque ele era alto, magro e andava como uma gazela) que falava fininho como uma vitrola fora de rotação e seu companheiro, que tinha e voz e a gargalhada mais irritantes do mundo... eles ainda vão aparecer muito por aqui... eu estava mesmo cheia de pecados a pagar!

Pois é, reencontramos a Micheline e o Orlando, aquele casalzinho que o Mauricio defendeu na fila em Navarrete. Ela parece uma “bonequinha de porcelana” – na linguagem da Cris – e conversamos por um bom tempo.
Escrevi uns versos para a Maria Tobia e acabou o dia.

Anos depois, ajudei um amigo nos preparativos para o Caminho. Então pedi a ele - Aramiz Bussular - que quando passasse por Azofra desse um forte abraço na Maria e dissesse que era por mim. Ele narra em seu livro o quão foi emocionante esse encontro, e mais ainda, ler no caderno os versos que deixamos anos antes e que ela guarda com o maior carinho.
Assim é o Caminho!

Parêntesis 4 – Tem pouca foto porque a dor era tanta que não tinha ânimo nem para fotografar!

P.S. Deixo um abraço para a Cristina Bernardo que veio visitar-me mas não deixou link

terça-feira, 9 de setembro de 2008

MUITAS PESSOAS – DIFERENTES LIÇÕES

Logroño - Navarrete - Caminho
Cristina saiu cedinho com a Helenice e nós ficamos para trás... levantar cedo nunca foi o meu forte!
Havíamos combinado encontrar-nos em Navarrete. Seria tranqüilo, coisa fácil, de uns 13 km., só não contávamos que a saída de Logroño é super complicada, a gente perdeu um tempão atravessando a cidade até encontrar as setas amarelas indicativas do Caminho. Não contávamos também com a “alma caridosa” que construiu uma calçada, cujas árvores ainda não haviam crescido, o que fazia o calor parecer insuportável. Tampouco com os trechos na estrada e o trânsito pesado de caminhões enormes que chegavam a nos desequilibrar com o deslocamento do ar...
Quando chegamos, enfim a Navarrete, encontranos a Cris já alterada pelas cañas e pelos acontecimentos...

Navarrete - Vista da cidade

Como eles chegaram cedo (no caminho encontraram-se com o Osmar, a Ingrid – uma alemã e um outro peregrino) e o albergue estava fechado, sentaram-se no bar da Maruja, estrategicamente instalado ao lado do albergue. Logo o Osmar chegou ao bar meio desesperado porque suas pernas estavam muito inchadas e pintadas de vermelho. Um rapaz da cidade que estava no bar, na mesma hora prontificou-se a levá-lo ao médico. Não só levou, como esperou, providenciou remédios e trouxe o Osmar de volta, por solidariedade... Como o mundo seria melhor se fôssemos, no dia a dia, solidários como somos no Caminho!
Foi neste ínterim que chegamos.
O Osmar arrasado, abraçado à Cris, chorando muito. O médico havia falado que ele teria que parar de caminhar por no mínimo 4 dias. Isto é sentença de morte para um peregrino!
Logo depois Maria do Carmo e Ademir chegaram, ficaram muito tristes pelo Osmar e decidiram ir de ônibus até Azofra, que era a cidade mais próxima que possuía melhores recursos.
Foi triste ter que nos despedir deles...
A gente se despede sem saber se um dia vai voltar a ver. É difícil ver nossos caminhos transformarem-se em encruzilhadas...
Nosso astral não estava nada bom.
Foi dando a hora do albergue abrir e nós nos encaminhamos para formarmos uma fila. Foi quando apareceram uns homens, não eram rapazolas, deviam ter mais de 30 anos, e resolveram furar fila logo na frente de um casal de velhinhos fantástico – Orlando e Micheline – e ele, Orlando, tentando ser educado, e os homens nem aí. Mauricio ficou furioso, mostrou seu lado de tiranossauro rex (sim, o apelido que demos ao Mauricio é este...), esculhambou com os caras, daí eu entrei na briga também, mais gente entrou e foi uma verdadeira torre de babel de xingamentos, mas acabou que eles foram para o fim da fila e não mais importunaram aqueles que se tornariam nossos grandes companheiros de jornada.
Tomamos banho (frio!), fizemos compras, visitamos a cidade e a Cris foi à missa enquanto eu e o Mauricio mais o Orlando e a Micheline fomos jantar.

ParêntesisMenu do Peregrino – Toda cidade onde tem albergue, vários restaurantes servem o Menu do Peregrino, que vem a ser uma refeição a um preço mais acessível. Consta de uma entrada – primero plato – que pode ser uma salada ou uma sopa, segundo plato – carne e batatas, ou macarrão, é a refeição propriamente dita, postre – sobremesa, invariavelmente sorvete ou flan (nunca mais comi flan na minha vida!) e para beber vinho ou água, ou seja, se você pedir uma garrafa de água, fica sem vinho e vice-versa. Vocês já viram algum lugar onde a água vale o mesmo que o vinho? Vão ao Caminho e encontrarão...

Quando voltamos ao albergue a Cris estava em polvorosa, o “Sir Lancelot” (creio que seu nome era Antoine), que já havíamos visto outras vezes, estava no beliche abaixo do dela... era um homem na faixa dos seus 55/60 anos, excelente aparência, educadíssimo... mas ela foi à cozinha e o encontrou com a porta fechada, vários papéis espalhados pela mesa, e falando ao microfone, desses microfones grandes, sem fio. Ela fechou a porta devagarinho e ficou em dúvida se tinha sido vista. Porém a dúvida maior era: Será que ele é um espião? (rs)
Diz ela que mesmo assim dormiu bem!


Navarrete - Ruínas do Hospital de Peregrinos San Juan de Acre (1185) - detalhe, a porta deste antigo hospital é hoje a porta do cemitério!

Um dos nossos exercícios mais fantásticos era tentar descobrir, através da adivinhação, o que cada pessoa fazia na vida e o motivo de estar no Caminho.
Uma vez que nos reduzimos ao que aguentamos carregar, o Caminho nivela todas as pessoas. Todos são obrigados a lavarem suas roupas, dormirem e compartilharem os mesmos espaços, carregarem suas coisas. Então, derrubadas as barreiras impostas pela classe social, poder aquisitivo, cargo, etc. o que sobre é o ser humano em essência e esse ser humano é que se conhece e deixa conhecer no Caminho.
Há também as antipatias gratuitas, essas não têm solução. Ou melhor, às vezes têm... Detalhes nos próximos capítulos.
Porém hoje quero compartilhar o que enfrentei na saída de Logroño. Foi nesta saída que sofri um duro golpe no ego e na alma.
Vínhamos caminhando, naqueles trajes que já não estavam mais tão bonitos de se olhar, pois eram as mesmas roupas que usávamos, lavávamos e voltávamos a usar, sem passar, porém limpas, mas já um tanto encardidas, carregando nossas mochilas pesadas, mas com a alma já um tanto leve por termos conseguido vencer mais uma etapa (cada dia era uma vitória!), sem contar as dores do corpo.

Passando por um bairro “classe A” no quesito poder aquisitivo, ao longe avistei uma senhora elegante, de “tailler” amarelo, sapatos salto 10, bolsa, jóias, tudo de grife. E a mulher era muito bonita, externamente. Ao nos aproximarmos, eu estava na frente, ela deu dois passos para trás, para não existir nenhuma possibilidade de contato físico para comigo e olhou-me, de cima em baixo, como se olha a um cão sarnento, mas sem piedade, olhar de asco!
Aquilo tocou-me a alma e eu desandei a chorar... o Mauricio tentava acalmar-me dizendo que era uma pobre coitada, que eu não chorasse, mas nada adiantava... eu não chorava por ela, chorava por mim.
Chorava pelas vezes com que devo ter olhado pelo meu irmão de jornada com aquele mesmo olhar de asco.
Chorava pelas vezes com que não consegui enxergar o outro além das vestes que ostenta.
Chorava pela minha cegueira.

Navarrete - Paróquia de La Assención (Séc. XV)

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

DEIXANDO NAVARRA, ENTRANDO EM LA RIOJA

Los Arcos - Placa do Cemitério


Deixamos Los Arcos cedinho, pois era uma caminhada de “duas botinhas”, na nossa leitura: muito difícil, e grande, pois até Viana seriam 18,5 km, de muitas subidas e descidas e cruzamento de asfalto, ou, se resolvêssemos ir até Logroño, seriam 27,9 km, só de trilha.
Meus pés ardiam, queimavam, vazavam, de tantas bolhas. Não conseguia encontrar uma explicação que não fosse mesmo uma prova pela qual teria que passar, prova essa que consistia em dor física, além das muitas dores da alma, uma vez que havia feito, com a mesma bota, a Trilha Inca, e não sofrido nada, nem uma bolhinha... mas, para o que não tem remédio, tem farmácia: descobri um arsenal de medicamentos e artefatos que ajudam os peregrinos e que ninguém havia me alertado do tipo: Betadene (um tipo de iodo que não deixa inflamar), álcool de peregrino (para massagear os pés), Compeed (uma espécie de emplasto acrílico que protege a área do pé que está na iminência de aparecer bolha ou calo), rolinhos de acrílico e espuma (que a gente compra e vai cortando do tamanho do dedo para proteção), etc... etc... Ou seja, não precisa ficar levando um tanto de esparadrapo, curativo, gaze, etc. porque é “peso morto”, à medida que precisar compra só aquilo que for necessário.
Logo na saída de Los Arcos tem um cemitério muito antigo, cuja placa diz “Eu fui o que você é, Você será o que eu sou”! Achei fantástico e logo parei para fotografar!
O Mauricio seguia na frente, o cemitério foi a deixa para ele deixar-nos para trás... ainda não sabíamos, de verdade, seu pavor por este “tipo de coisa”! rs
Seguimos caminhando, eu e a Cris... pensando, cantando, conversando...
Passamos por Sansol – onde não tem nada! Quer dizer, tem uma farmácia! E seguimos até Torres Del Río, famosa por sua igreja octogonal “Igreja do Santo Sepulcro”, similar ao Templo de Jerusalém, assim como Eunate, foi construída pelos Templários e é uma das construções mais interessantes de todo o Caminho, desde a entrada, com sua cruz patriarcal, passando pela cúpula, em forma de estrela de oito pontas, até seus capitéis em forma de serpentes, aves e centauros. Um dos aspectos que mais me chamou atenção foi a singularidade do Cristo crucificado, cujos pés encontram-se paralelos.



Torres Del Río - Iglesia del Santo Sepulcro



De Torres até Viana é um vai e vem de sobe e desce que eles chamam de “rompepiernas” – moleza! E assim seguimos, até chegarmos a Viana.
Havíamos planejado ficar no albergue de Viana. Encontramos Mauricio sentado perto da Igreja, bonita, por sinal, conversamos um pouco e ele se foi. Daí sentamos num barzinho, fizemos um lanche, tomamos umas “Cañas” espécie de chopp...


Parêntesis 1 – Eu atualmente não bebo quase nada, nem socialmente, e quando fui ao Caminho já não bebia, então, bastava um copo para ficar alegre, dois para ficar levemente alterada e três para ficar alcoolizada.







Viana - Iglesia de Santa María




Talvez por ser domingo, a cidade estava cheia de gente, muito movimento, e a gente desacostuma a isso... e também como era cedo, decidimos seguir até Logroño.
De Viana a Logroño é um trecho mais fácil, mas estava muito quente, o asfalto fazia derreter até os miolos... sombra era artigo de luxo... e eis que do nada nos aparece uma árvore, com um sofá... Tudo bem estava sujo, cheio de titica de pássaro, mas não resisti!




Torres Del Río - Logroño - Parada no Caminho




Quase chegando a Logroño, passa-se pela Casa de La Señora Felisa. Ela coloca um pequeno toldo em frente ao seu muro, com uma pequena mesa, e serve figos, água e amor a todos os peregrinos que passam, além de manter um caderno aonde os que se vão deixam recados para os que ainda vêm. A velhinha, de seus oitentas anos, à época, nos recebeu com o maior carinho, mas desconfiada do jeito que sou, e curiosa também, resolvi ler o caderno primeiro. Santa intuição! Havia um recado do Mauricio, cifrado, onde dizia para não comermos os figos. A Cris ou não deu atenção, ou não entendeu foi logo comendo, eu aceitei a água apenas... os figos são secos no sal! Carimbamos nossa credencial, agradecemos e seguimos com a Cris me amaldiçoando...
Chegamos a Logroño, cidade grande, o albergue fechado e nós, pobres peregrinos, debaixo de um sol escaldante, na fila, esperando a abertura.




Logroño - Catedral Santa María La Redonda



Voltamos a encontrar a Maria do Carmo (que havia caído mais uma vez e estava machucada), Ademir e Osmar.
Conhecemos a Maria do Socorro, de Brasília, Gente assim mesmo, com G maiúsculo! Amiga querida que jamais quero perder...
A Cris depois me contou que ficou super-sensibilizada quando soube que o rapazinho francês (ainda vou lembrar o nome dele) ajudou o Andrés (francês) a chegar ao albergue. O Ula-lá (apelido do Andrés, sim, dávamos apelidos a todos! Só entre nós, claro!) havia se sentido mal e o rapaz havia carregado as duas mochilas por mais da metade do caminho. Isso é um esforço sobre-humano, a gente mal agüenta com a própria mochila. Passei a admirar ainda mais aquele jovem. Pela coragem, pelo desprendimento, pela solidariedade.
Logroño, a cidade grande, tem uma característica das cidades da Espanha: aos domingos, as mães vestem suas filhas com aqueles vestidos que parecem bolos de casamento (na linguagem da Cris) e saem para passear na rua. Parece um bando de bolos correndo pela calçada e as mães correndo atrás para que não se sujem. É interessante, para não dizer um pouco cômico, ficar observando a diferença de comportamento. Se for para divertir, deixa as meninas sujarem as roupas... Parece que é só para exibir!
Naquela noite abri uma exceção e tomei um autêntico La Rioja!
Dormi o sono dos justos (e dos exaustos!)

Parêntesis 2: Sei que existe um ditado que diz que justificativas são desnecessárias, pois os amigos não necessitam e os inimigos não acreditam. Inimigos, se os tenho ainda não os conheço e não gosto de deixar meus amigos sem saber a causa dos meus “sumiços”. É que neste final de mês o jornal complicou e eu estou trabalhando na comissão organizadora da VII Jornada Médico-Espírita do Espírito Santo. Para completar, estou sendo “sugada” pela Gabi (minha “Sinhazinha”) para colocar o consultório em dia – trabalho escravo, na minha linguagem, na dela é trabalho voluntário! O que mãe não faz pelos filhos! Mas agora prometo visitá-los! Juro!