quinta-feira, 27 de novembro de 2008

ASTORGA, UM CAPÍTULO À PARTE



Chegada a Astorga


Astorga é uma cidade linda e respira história por toda parte.
Chegamos ao albergue e fomos muito bem recebidos pelos hospitaleiros. O albergue, apesar de simples, é muito acolhedor. A Cris estava mal. As camas eram “treliche” (rs). A Cris foi pro “poleiro” de cima (como ela dizia), o Mauricio no meio e eu embaixo. Eu fazia qualquer negócio para não ter que dormir na parte de cima. Meus pés doíam, mas como eu disse, já estava me acostumando com a dor, daí, quando a Cris disse que ia ficar no Albergue, eu e Mauricio resolvemos sair para conhecer a cidade.
Eu tinha uma lista enorme de coisas a conhecer.

Parêntesis 1: Durante todo o tempo em que sonhei fazer o Caminho, e depois, quando comecei a ler os livros onde peregrinos narravam suas histórias, eu ia anotando tudo o que tinha de interessante em cada cidade: monumentos, museus, igrejas, pessoas, etc, que depois escrevi no meu guia. Então, quando chegava numa cidade, tinha minha listinha de visitas, em ordem de prioridade (rs).

Astorga


Parêntesis 2: A história de Astorga se confunde com a história do Caminho... chamada de Asturica Augusta, era um importante centro astur e romano e ponto de comunicação. Na idade média chegou a ter 25 “hospitales” (os albergues de hoje), o mesmo número dos existentes na capital da província de León – Burgos, sendo que sua população era dez vezes menor que a da capital. Eram tantos albergues que se criou uma nova função, o “veedor”, encarregado de visitar, ao anoitecer, todos os estabelecimentos para que os pobres e os viajantes não repetissem noite em um albergue diferente e assim permanecerem por muito tempo na cidade. Os peregrinos cruzavam a Porta do Sol e seguiam pelas ruas de San Francisco até chegarem ao centro. As construções mais importantes encontram-se reunidas numa mesma área. O Palácio Episcopal, encarregado a Gaudí depois do incêndio que destruiu em 1866, e que agora é conhecido como Palácio de Gaudí e abriga o Museu dos Caminhos, o que sobrou das muralhas romanas e a Catedral Santa Maria, que levou 300 anos para ser construída.

Antigo Palácio Episcopal, hoje Palácio de Gaudí

Saímos a passear pelas ruas, comemos num restaurante ótimo (parecíamos até gente!) e resolvemos começar pelo Palácio de Gaudí. Gente, o homem era doido de pedra! É tudo misturado, torres imensas, tijolos aparentes, pedras, vidro, mosaicos... entradas meio que secretas... foi fantástico descobrir cada recanto, cada cor que refletia quando o sol incidia sobre os murais... perdemo-nos naquele mundo encantado. Pena que é proibido fotografar seu interior...

Cidade romana sob Astorga - ruínas

Depois fomos para as muralhas, as escavações da antiga cidade romana, fotografamos... e quando chegamos à Catedral Santa Maria, estava acontecendo uma exposição de arte sacra “Las Edades Del Hombre” que reunia peças e artefatos abrangendo todos os séculos desta era e alguns da era passada, porém, pela hora, já não podíamos mais entrar. Foi uma frustração!

Catedral Santa Maria

Encontramos vários amigos, inclusive a Maria, de Brasília, e a Ingrid, alemã, que também não conseguiram entrar.
Retornamos ao albergue e encontramos mais amigos... Soubemos pela Cris que a Gisela (argentina) havia caído na escada do albergue de Villar de Mazarife e que teve que ir de ônibus para Astorga em busca de ajuda médica, estava com a perna imobilizada e teria que interromper a caminhada por, pelo menos, uma semana... era hora de dizer adeus à Gisela! (mal sabia eu que voltaria a encontrá-la vivendo no México!)


Albergue de Astorga

O albergue parecia uma festa. Primeiro porque estávamos, em grande número, de já conhecidos – eu, Mauricio, Cris, Graça, Pedro Grandão, Maria, Rosa, Ângeles, Ingrid, Salvatore (italiano da terceira idade metido a galanteador, uma piada!), depois porque a banda da cidade estava ensaiando no prédio anexo ao albergue. Parecia que tocava para nós... daí o Salvatore tirou a Rosa para dançar e nós rimos bastante, pois ela bailava muito bem e não se furtou ao convite!
Conversando, descobrimos que tínhamos feito o inverso. A Cris tinha visto a exposição e nós o Palácio. Ela disse que estava linda, que não podíamos perder, etc e tal, daí decidimos que no dia seguinte a Cris seguiria com a Graça e nós ficaríamos para ver a exposição, já que a caminhada seguinte seria só (rs) de 20,6 km.
Fomos dormir sonhando com um lindo e quente sol... e não com os 8 graus daquele dia!

Detalhe da fachada da Catedral Santa Maria

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

ASTORGA, LÁ VOU EU!

Puente y Hospital de Órbigo - chegada


Saímos cedo, o caminho à nossa espera era longo – 30,5 km – o guia anunciava 2 botinhas, ou seja, caminho difícil pela frente, num tempo de aproximadamente 7 horas... para quem tem 20 anos, claro!
Sabíamos que os primeiros 10 km eram absolutamente desertos, não teríamos nenhum povoado, água, armazém, “nadica de nada”... para adiantar saímos sem comer nada.
Fazia um frio de doer os ossos.

Parêntesis 1: Vocês já repararam que quanto mais “usados” ficamos, mais os ossos doem?

Puente y Hospital de Órbigo - Igreja
Andamos, andamos e nada de esquentar. Daí começamos a ter fome e eu com vontade de “largar do barro”.

Parêntesis 2: Até aqui eu consegui ocultar certas intimidades, mas vai chegar num ponto em que elas não mais poderão ser ocultadas, então é melhor ir preparando... Para não parecermos deselegantes, quando tínhamos vontade de evacuar, usávamos a expressão “largar o barro”. E quando você caminha praticamente o dia inteiro, não se pode esperar banheiros químicos à beira da trilha, procura-se um lugar mais ou menos oculto, e é como aquele ditado “se não tem tu, vai tu mesmo”... O mais interessante é que o papel higiênico é vendido em pacotes de 3 rolos, então, normalmente, sabíamos a cor do papel das pessoas mais próximas, daí sabíamos quem havia utilizado o mesmo “banheiro” antes de nós!

Mas voltemos ao caminho, literalmente... paramos no caminho mesmo, perto de uma casa onde havia uma fonte com os dizeres “água potável”. Comemos nosso pão com sei lá o que, tomamos nossas caixinhas de suco, eu larguei meu barro e fomos adiante. Passamos por Villavante e seguimos para Puente y Hospital de Órbigo.

Puente de Órbigo

Parêntesis 3: A Ponte é de origem romana, imensa, linda e é atravessando-a que se chega à cidade. Repleta de histórias, a ponte é conhecida por ter sido palco de inúmeras batalhas, entre elas aquela em que o rei Alfonso III, “El Magno”, enfrentou as tropas cordobesas, no ano 900. Tem o epíteto de “Passo Honroso”, mas não pelas batalhas e sim por uma história de amor. Conta-se que em 1434, um nobre da cidade de Leon se apaixonou por uma mulher. Chamava-se Don Suero de Quiñones, era rico e forte, e tentou de todas as maneiras receber a mão de sua dama em casamento. Mas esta senhora não quis sequer tomar conhecimento de sua paixão e rejeitou o pedido. Don Suero, sentindo-se ferido em seu amor próprio, resolveu fazer algo que chamasse a atenção da distinta dama, realizaria uma façanha tão grande que ela jamais o esqueceria. Durante muito tempo ficou arquitetando o que poderia fazer. Naqueles primeiros séculos o Caminho atraía gente de toda a Europa: peregrinos, padres, nobres, e até mesmo reis que queriam prestar sua homenagem ao Santo ou pagar promessas, atraía, desta forma, também os chamados assaltantes e bandoleiros. Foi aí que Don Suero, ouvindo falar dos crimes e das lutas no Caminho de Santiago, teve a idéia de reunir dez amigos e instalaram-se na ponte que dá acesso ao que era um pequeno povoado. Daí mandou espalhar pelos peregrinos que iam e voltavam pelo Caminho de Santiago que estava disposto a permanecer ali trinta dias – e quebrar trezentas lanças – para provar que ele era o mais forte e o mais ousado de todos os cavaleiros do Caminho. Acamparam com suas bandeiras, estandartes, pagens e criados, e ficaram esperando os desafiantes. As lutas aconteceram 15 dias antes do dia consagrado a Santiago – 25 de julho – e 15 dias depois. Quiñones e seus amigos combatiam durante o dia e preparavam grandes festas à noite. As lutas eram sempre na ponte, para que ninguém pudesse fugir. Todos os cavaleiros vencidos eram obrigados a jurar que nunca mais iriam lutar contra os outros e que dali em diante tomariam para si a missão de proteger os peregrinos até Compostela. A fama de Quiñones percorreu em poucas semanas toda a Europa e muitos foram os que apareceram para desafiá-lo na esperança de vencê-lo e ficarem famosos. Mas enquanto os outros buscavam apenas fama, Quiñones seguia lutando pelo amor de Leonor Tovar. E este ideal fez com que vencesse todos os combates. Quando as lutas terminaram, Don Suero de Quiñones foi reconhecido como o mais bravo e o mais valente de todos os cavaleiros do Caminho de Santiago. A partir desta data, ninguém ousou mais contar bravatas sobre coragem, e os nobres voltaram a combater o único inimigo comum, os bandoleiros que assaltavam os peregrinos. Esta epopéia, mais tarde, iria dar início à Ordem Militar de Santiago da Espada. Depois disso, Don Suero foi a Compostela e entregou um bracelete de ouro que usou durante as batalhas ao apóstolo Santiago. Atualmente a jóia ostenta o busto de Santiago Alfeu, no Museu da Catedral. (Mas não consegui descobri se ele enfim casa ou não com Leonor!)
Dizem alguns historiadores que Miguel de Cervantes teria se inspirado em Suero de Quiñones para compor Dom Quixote.

Pois bem... quando estávamos quase terminando de atravessar a ponte, vejo um vulto encolhido nos degraus de um hostal, aproximo-me e tcham! Tcham! Tcham!... Mauricio! O frio era tanto e a raiva também, porque ele não tinha nada que ir embora (coitado! A gente traça um caminho e quer que o outro siga o que a gente pensou, sem perguntar se ele concorda... perdão, meu amigo! Mas eu aprendi! Juro!) que nem conversamos direito, só expliquei que havia tentado enviar os óculos, mas que não havia conseguido...
Seguimos juntos... sem muito conversar... era frio pra caramba!

Villares de Órbigo

Passamos por Villares de Órbigo, Santibáñez de Valdeiglesias (na base, um não tem nada, outro nada tem...) e paramos em San Justo de La Veja. Comemos uns sanduíches e seguimos...
Meus pés doíam tanto que eu já nem me importava, acho que estava me acostumando com a dor.
Só queria chegar a Astorga...
Mas Astorga vale um capítulo inteiro!

Caminho Valdeiglesias

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

DE LEÓN A VILLAR DE MAZARIFE


NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA ENCRUZILHADA,
TINHA UMA ENCRUZILHADA NO MEIO DO CAMINHO...


Placa Informativa de quase todos os povoados e pontos inportantes

Pelos nossos planos, meus e de Cristina, naquele dia iríamos até Villar de Mazarife, o que daria quase 22 km, uma boa distância, e lá ficaríamos, mesmo sabendo, de antemão, que o albergue era antigo e desconfortável.
Logo na saída de Leon, na Praça em frente a um hotel, tinha uma exposição de carros antigos e nós ficamos apreciando, que nem turista... muito lindo! Mesmo porque o Mauricio é apaixonado por carros.
Fazia frio. O termômetro na rua marcava 12 graus!
Logo chegamos a La Virgen del Camino e o termômetro já marcava 22 graus. Eu e o Mauricio paramos para fotografar uma das poucas igrejas modernas que encontramos por todo o Caminho, a Cris resolveu ir tomar um café.

La Virgen Del Camino - Igreja

Daqui a pouco, chega a Cris, estourando de rir: havia encontrado um ciclista alemão, de cabelos e barba brancos, muito simpático (na sua versão) que havia oferecido carona na sua bicicleta, mas que quando abriu a boca para rir não tinha um só dente que não fosse com cárie! Só não descobri, até hoje, em que língua eles conversaram!
Logo adiante, pelo guia, encontraríamos uma encruzilhada. Um caminho levava a Villar de Mazarife e o outro a Villadangos Del Páramo... e eis que surgem... tcham, tcham, tcham! os Três Patetas! Saímos correndo para escolher nosso caminho para eles não verem qual caminho tínhamos tomado e quem sabe, assim, escolherem outro. Corremos e nos escondemos atrás de uma moita... segurando o riso e rezando para eles irem pelo outro caminho... Nossa reza não teve a força necessária... eles seguiram o mesmo caminho que nós. Daí tivemos que ficar escondidos na moita até eles desaparecerem no caminho, pois como íamos explicar nossa aparição do nada? Milagre?


Caminho depois da moita (rs)

Parêntesis 1: O Bambi sempre levava um lencinho amarrado ao pescoço. Eu já sonhava em apertar esse lencinho até sufocá-lo, depois, como o Trovão Australiano ia ficar sem ação, mataria-o com as próprias mãos, o outro ia correr de medo e nunca mais aparecer! Esse era meu sonho secreto!

Diminuímos o ritmo para não ter que ouvi-los e seguimos em frente...

Parêntesis 2: A Cris havia me ensinado que Mantra é repetição, seja uma música, uma palavra, uma frase, que nos leva a um estado mental de tranqüilidade, de não pensamento, de mudança de comportamento. Naquele dia escolhi a palavra TOLERÂNCIA e passei o resto do caminho repetindo: tolerância, tolerância, tolerância...

Passamos por Oncina de La Valdoncina (que não tem nada), por Chozas de Abajo (que nada tem) e enfim chegamos a Villar de Mazarife. O albergue tem uma aparência horrorosa! Uma casa de dois andares, meio torta (de verdade!), velha, uma lástima! No entanto, Yolanda, a hospitaleira, nos recebeu tão bem, apesar dos colchões no chão, ela disponibilizou uma quarto só para nós! Pobrezinha, quase ninguém fica lá... e quem fica, fica por piedade, nós resolvemos ficar!


Villar de Mazarife - Albergue (é a casa tortinha, descascadinha, feinha...)

Mais uma vez Mauricio resolveu ir embora!
Isso já estava me dando nos nervos: Quer ir, vai! Adeus! E ele foi... E eu fiquei, não sem sofrimento, confesso agora, mas não demonstrei, nem tomei porre, só umas lágrimas insistiram em cair junto ao cair da noite...
Mas nem tudo era ruim: o guia dizia que era banho frio e no entanto já tinha água quenta, apesar da casa de banho ficar no jardim (rs)
Muitos peregrinos, desapegados e simples como nós, resolveram ficar ali. Assim reencontramos Marco, meu querido amigo, Pedro Grandão, Gisela, Ronaldo, Dulce, Rosa e Ângeles, Ingrid e outros...
Yolanda, com o maior carinho, cuidou das minhas bolhas e das da Gisela, enquanto disputávamos quem tinha mais bolhas e de quem era a maior. Eu tive que admitir, como disse a Gisela, só nisso a Argentina ganhava do Brasil! E todos em volta rindo das duas “estropeadas”!
Depois do banho, fui arrumar minhas coisas e eis que encontro na minha mochila os óculos do Mauricio.

Parêntesis 3: Nós tínhamos o hábito de um guardar as coisas de uso freqüente na parte de cima da mochila do outro, assim não tínhamos que abaixar a mochila para pegar, era só o outro parar e pronto! O Mauricio, assim como eu, tinha dois óculos de grau, um normal e um com lentes escuras, e o normal ficou comigo.

Fiz de tudo para mandar o óculos para ele. Tentei telefonar para o albergue da cidade próxima, não consegui, não tinha telefone. Tentei mandar por outro peregrino confiável, mas já não tinha mais peregrinos naquela hora... tentei ver se algum motorista de táxi ia para lá, mas nem táxi tinha na cidade... Bom, apesar de aborrecida, minha consciência estava tranqüila.
Lembro que fiquei muito preocupada e perguntei a Cris o que ela achava de isso tudo: da minha identificação com Mauricio (parecia que eu o conhecia a vida toda), da sua partida repentina, das tentativas de se separar da gente (que ele tinha todo o direito), do fato de eu me sentir meio perdida sem ele como se ele fizesse parte do meu caminho. Daí a Cris tirou um livrinho do Novo Testamento e me mandou abrir ao acaso... Li um salmo (que não me lembro qual) mas que dizia sobre paciência e tempo e isso me tranqüilizou.
Naquela noite fez calor... as pessoas resolveram colocar seus colchões na varanda interna que circundava a casa...
Eu e Cris não abrimos mão do “nosso quarto”.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

MANSILLA DE LAS MULAS - LEÓN

León



Saímos e logo entendemos o motivo pelo qual Wolf havia nos dado as fitas de sinalização. É um trecho a princípio monótono, ao lado da rodovia; depois é no próprio acostamento da dita cuja... quando passava um caminhão a gente sentia até o deslocamento do ar... coisa de doido!
Nós até tentamos fazer brincadeiras, sempre macabras, imaginando um monumento à margem da rodovia com a inscrição “Aqui jazem três brasileiros peregrinos”... mas a coisa é feia mesmo!
Passamos por Villamoros, Puente de Villarente, Arcahueja e Valdelafuente, onde paramos numa pracinha para descansar e encher os cantis. Mas saímos rápido porque os “Três Patetas” chegaram.

Parêntesis 1: Vocês se lembram do ocorrido em El Burgo Ranero? Que eu quis partir para a ignorância por causa do Bambi e do Australiano? Pois é... eles arrumaram outro amigo. Sem um adjetivo melhor, resolvemos apelidá-los de “Três Patetas”.

León - Monumento ao Peregrino
A chegada a León foi difícil. O asfalto quente, as pessoas nem um pouco simpáticas (mas Burgos ainda continua na ponta, com grande vantagem!) e os “Três Patetas” seguindo a gente. Nós achamos que eles estavam perdidos e seguiam-nos crendo que sabíamos o caminho, num ato de crueldade, paramos numa padaria e deixamos eles passarem! Mas Santiago já me cobrou o devido preço, não se preocupem!
Compramos nossos pães e doces, deliciosos, sentamos no degrau da vitrine e comemos ali mesmo, suportando os olhares de asco das pessoas que passavam.

Parêntesis 2: Revi, mais uma vez, meus “pré-conceitos”... quantos olhares iguais devo ter dirigido aos irmãos menos afortunados! Essa lição juro que aprendi!

León - Muralhas

Entretanto, outras pessoas, reconhecendo-nos como peregrinos, diziam: “Buen provecho” seguido de um olhar, misto de piedade, compreensão e incentivo. Assim é o caminho, como na vida, uns te derrubam, outros te ajudam a levantar!

León - Catedral Santa Maria

Com uma certa dificuldade chegamos ao albergue. Cinco estrelas em acomodações, nenhuma em hospitalidade e calor humano. Tinha um grande quarto (a Cris contou: 44 beliches) e o “hospitaleiro” definia até qual a cama você ia ocupar. Ordens rígidas que nem de exército. Às duas da tarde o albergue fecha, quem está dentro não sai, quem está fora não entra... e só reabre à quatro!
Cris resolveu ficar e eu e Mauricio: pernas pra que quero!
León é uma cidade linda! Muitas construções antigas, terra de Gaudí, praças com fontes, vale a pena conhecer, dá até para esquecer as bolhas.
Na volta ao albergue encontramos a Cris e saímos novamente.

Léon - Igreja e Museu San Marcos

Decidimos, depois de passear, passar num supermercado e comprar provisões além de produtos para uma boa salada de jantar. Caprichamos na nossa salada! Comemos à vontade, mas tinha muita salada...
Daí os “Três Patetas” estavam lanchando... resolvemos quitar logo nosso karma e oferecemos nossa salada a eles, que aceitaram prontamente.
Pelo menos fomos dormir com a consciência tranqüila!

Eu e Gaudí (me achando! rs)

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

DE EL BURGO RANERO A MANSILLA DE LAS MULAS

COMPARTILHANDO PÃO E VINHO

Reliegos

É um caminho reto, interminável... cansativo ao extremo.
Chegamos a Reliegos e Mauricio, péssimo, sentou-se na primeira soleira que encontrou. Fiquei fazendo-lhe companhia enquanto Cristina procurava um bar. Nós resolvemos comer nosso lanche ali mesmo.
Descansamos e voltamos à calçada interminável que é esta parte do caminho, até chegar a Mansilla de las Mulas.
Logo na entrada da cidade tem um monumento aos peregrinos, muito bonito. Tudo na cidade é bonito e limpo, e, contrariando nossas expectativas, é uma cidade relativamente grande.

Mansilla de las Mulas - Monumento ao Peregrino

Parêntesis 1: A parte principal da cidade é circundada por uma muralha romana, do período medieval, com alguns portais. É muito bonito passear por entre construções tão antigas e ficar imaginando histórias...
Mansilla de las Mulas - Porta romana

Almoçamos, lavamos roupa e fomos descansar...
A Ângeles convidou-nos a participar de um jantar coletivo que iria preparar. Seria um prato típico espanhol: sopa de alho. É claro que aceitamos. Para nós coube levar pão e vinho.
Eu e Cris resolvemos sair para passear pela cidade e entramos numa loja. Compramos uma calça comprida para cada uma e uma blusa de moletom (sudadera) de presente para o Mauricio, pois ele estava passando frio (e a dele estava horrorosa, foi uma maneira educada de dizer para largar a outra para trás, rs) e nós, depois de tanto desapego, ficamos sem roupa (rs).
No que estávamos passando numa rua, com nossos vestidinhos de liganete e sandálias havaianas, eis que uma moça que estava conversando na calçada diz, em voz alta: “ Conheço essa sandália! Vocês são brasileiras!”, e veio correndo em nossa direção. Ela é casada com um espanhol, tem um filho lindo, nos abraçamos carinhosamente como se fôssemos conhecidas de longa data. Conversamos bastante, ela nos apresentou sua sogra e a tia do esposo. Na despedida começou a chorar... e eu que não sei deixar ninguém chorar sozinho, chorei junto.
Deve ser difícil viver longe de tudo e todos que você ama... só um Amor muito forte pode sobreviver a isso.
Voltamos para o albergue e os preparativos da sopa estavam a pleno vapor...
Acontece que a calça que eu comprei era muito comprida... tinha que fazer bainha. Tentei subornar a Cris, mas não teve jeito. Daí parti para o Mauricio. Lembrei das roupas que eu tinha lavado para ele, da companhia, só faltei ajoelhar. Ele disse que faria, mas com esparadrapo. Concordei. Melhor do que nada. A Cris marcou a altura e o Mauricio colou as barras com esparadrapo.

Parêntesis 2: Gente, vocês não vão acreditar, mas eu usei a calça depois que voltei, até ela ficar velha e surrada, e o esparadrapo não soltou! Milagre de Santo Mauricio!


Mansilla de las Mulas - Muralha romana

Alonso chegou sozinho e nos disse que Esperanza tinha voltado para cumprir a parte que não havia feito e que se encontrariam em León.
Chegaram também o Pedro Grandão e Gisela (Argentina, que eu voltaria a encontrar, anos depois, vivendo no México).
A Laura e o Wolf, hospitaleiros, são pessoas da maior grandeza. Ele é um velhinho risonho, de barbas brancas, atencioso, que nos forneceu mapas e fitas para amarrar nas mochilas, pois o próximo trecho é junto à rodovia e assim estaríamos melhor sinalizados. A Laura é uma jovem que não lembro a nacionalidade mas que sabe todos os nomes feios e gírias em português, e trata bolhas como ninguém!
Chegaram mais dois brasileiros: Dulce e Ronaldo. Ela, coitada, como eu, os pés repletos de bolhas.
Nosso jantar foi espetacular: Ângeles, Rosa, Pedro, Gisela, Alonso, Dulce, Ronaldo, Wolf, Laura, Cris, Mauricio e Eu.
Tomamos vinho que nem universitário que compra aqueles garrafões, vinho em garrafa pet, pode?
Fomos dormir mais de meia-noite!
Foi uma festa!

Monumento ao Peregrino - Porque eu posso até perder os pés, mas não perco a chance de fazer graça

terça-feira, 11 de novembro de 2008

SAHAGÚN A EL BURGO RANERO

PORQUE TOLERÂNCIA NÃO SE APRENDE COM SÓ UMA LIÇÃO!

Bercianos - Caminho para El Burgo Ranero


Reencontrar Mauricio foi uma grande alegria.
Mauricio foi a pessoa que me escutou, sem questionamentos, sem juízos de valor, mostrou-se capaz de compreender o ser humano com seus altos e baixos, suas virtudes e defeitos. Tenho por ele um carinho que nada desta vida vai mudar.
Combinamos que não iríamos muito longe naquele dia. Nosso destino seria El Burgo Ranero, uns 18 km., mesmo porque meus pés insistiam em pipocar bolha atrás de bolha...
A Cris neste dia estava elétrica... não teve paciência e saiu na frente, depois soube que encontrou com Neil, o Chileno, Marie Louise e que fez boa parte da caminhada com eles.
Foi a Cris que me contou uma história que ouviu de Neil:
Só existe uma santa sueca, Santa Brígida. Uma mulher forte e obstinada que fez o Caminho de Santiago e, durante a peregrinação, viu falecer seu esposo. Concluiu a caminhada sozinha e voltou a seu país projetando-se politicamente e influenciando o povo a lutar pelos seus direitos. Quanto a Igreja Luterana dominou o país, manteve Santa Brígida como único exemplo de santidade. (Não sei para que serve essa história, nem se é verdadeira, mas é mais uma do Caminho...)
Eu e Mauricio fizemos a caminhada conversando, contando o que havia acontecido conosco nos dias em que estivemos sozinhos e quando chegamos a El Burgo Ranero já tinha uma boa turma no bar em frente ao albergue: Cris, Neil, Marie Louise, Sandra e Amauri.
Juntamo-nos a eles e tomamos uma taça de vinho para depois almoçarmos, quando, de repente, ouvimos uma gritaria. Era a dona do bar (July) que brigava com um senhor porque este queria cobrar de um peregrino pelo serviço de lavanderia. As espanholas quando querem “rodar a baiana” não perdem em nada para nós, brasileiras.
A comunidade toda é quem mantém o albergue e todos os serviços para os peregrinos, e tem um grande orgulho disso.

El Burgo Ranero - Albergue

Nossos amigos resolveram seguir em frente e nós três ficamos.
Eu com os pés em petição de miséria. Mauricio com a garganta inflamada. Só a Cris é que estava bem. Mas foi uma boa decisão, pois assim que eles se foram caiu uma forte chuva.
Quando chegamos ao albergue encontramos o Padre Jesus Calvo, que já tinha conhecido Cris e Neil, e que tinha ido levar um papel xerocado com uma mensagem que ele fez dando boas vindas aos peregrinos. Conversava com Dona Amélia, um doce de pessoa, que é quem cuida do albergue. Padre Jesus nos contou casos de milagres acontecidos durante a guerra, bombas que caíram na igreja e não detonaram, ordens de destruir as igrejas que misteriosamente não eram escutadas pelos soldados, etc. Depois de um bom papo, nos abençoou, pegou sua bicicleta e seguiu adiante.
El Burgo Ranero foi um lugarzinho pequenininho onde ficamos para repor nossas energias... Quase ninguém fica lá. Só tem uma rua...

Saída de El Burgo Ranero para Mansilla de Las Mulas

Mas tem muita gente especial...
Mas como nada é perfeito... apareceu um danado de um australiano, jovem, que falava alto, num tom irritante, junto com um amigo gay, de fala fina, o Bambi e eles ficaram conversando até tarde como se albergue fosse a casa deles. Aquilo foi me “dando nos nervos”, quis partir pra briga, levantar e ir logo estourando, só não o fiz porque a Cris me fez uma preleção sobre paciência, sobre tolerância, etc, daí engoli minha raiva, tapei os ouvidos com silicone e fui dormir jurando que manteria distância daquele ser.
Consegui dormir, mas só pensava no amanhecer do dia seguinte para me afastar daquelas pessoas...
Mal sabia eu que o Grande Timoneiro tinha outros planos para mim...

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

RUMO A SAHAGÚN

ENCONTROS, DESENCONTROS & REENCONTROS

Caminho rumo a San Juan de Sahagún

Quando fomos deitar, depois da loucura daquele dia, dos 36 km e todo o mais, pensei comigo mesma: amanhã estarei um caco... tomei um Dorflex e entreguei para Santiago. E não é que o Santo compareceu! No outro dia eu estava inteirinha. Como se nada tivesse acontecido! Milagre!
Pegamos a estrada e juramos que não mais cometeríamos nenhuma loucura nem burrice como aquela.
Passamos por Terradillos de Templarios (tudo que remonta aos Templários é um atrativo a mais para mim) onde tomamos nosso café e trocamos um dedo de prosa com uma senhora muito simpática, que servia no único bar da cidade.
Vínhamos caminhando quando vimos os dois Phillip (o nosso amigo “Carruagens de Fogo” e outro, inglesinho, que conhecemos em Estella e reencontramos no caminho) encostados nuns sacos de feno. Não perdemos a chance, começamos a cantar o tema “Carruagens de Fogo” e passamos “chispando” por eles, às gargalhadas. Quando estávamos bem à frente, distraídas, conversando, eis que surgem os dois, e fazem o mesmo, inclusive com trilha sonora... tivemos um ataque de riso... é a cumplicidade do caminho. Coisas pequenas, que no dia a dia seriam insignificantes, tornando importantes e alimentando a amizade.

Eu e Phillip "Carruagens de Fogo" - Albergue de Sahagún

A estrada que leva a San Juan de Sahagun é linda, uma calçada de terra, flores dos dois lados… depois do deserto verde, este pedaço do Caminho foi um presente e tanto.
Nesse dia, eu e Cris, conversamos sobre nossas saudades, sobre nossos pais que já tinham partido, amigos que se foram, nesta ou para outra vida, choramos e exorcizamos nossas carências.

Parêntesis 1: Como é difícil lidar com a saudade, com o desapego das pessoas que amamos. Criamos nossos filhos querendo que eles vivam eternamente a nosso lado. Vivemos com nossos pais querendo que sejam eternos. Queremos nossos amigos sempre presentes. Quando isso não acontece ficamos meio perdidos, como que castigados pela justiça Divina (segundo a crença Católica Apostólica Romana, que tudo é pecado e castigo). Se lidar com o desapego de bens materiais já é difícil, quanto mais lidar com o desapego das pessoas que mais amamos e que tiveram que partir, prematuramente, antes de nós. Complicado essa coisa de saudade... venho tentando lidar com isso... mas ainda não consegui o diploma!

Quando chegamos ao portal da cidade estávamos prontas para iniciar uma nova jornada, interior e exterior.
O albergue é “6 Estrelas”! Ducha quente, lavadora de roupas, todo o conforto que já não estávamos acostumadas. O Refúgio (ou albergue) fica localizado numa antiga igreja, portanto guarda suas enormes pilastras de pedra, onde foi construído um mezanino, com sala de estar, quartos para oito pessoas, um luxo!
Quando estávamos chegando uma moça olhou para nós e perguntou:
- Vocês são Kátia e Cristina?
- Sim, respondi.
- Tenho um recado para vocês. Mauricio mandou dizer que está aqui. Que esperem por ele.
É claro que ficamos muito contentes, só não entendemos bem o resto do recado, parece que ele tinha ido ao médico, ou levado alguém... mas não interessava. O importante era que reencontrávamos nosso amigo.

Arco Medieval - Sahagún

Domingo, a maioria do comércio fechada, saímos para comprar nossas provisões e a Cris, que adora pedir uma informação, perguntou a um velhinho onde poderíamos ir, o pobre do velho nos levou até a padaria, ficou esperando para ver se estávamos satisfeitas ou se queríamos mais alguma coisa. Uma gracinha de pessoa.
Voltamos ao albergue. Tiramos foto com o Phillip junto à escultura de um peregrino que fica na entrada.
Estávamos descansando quando o Mauricio chegou. Fizemos a maior farra! Pulamos nele, abraçamos, quanta saudade!
Mauricio estava com a garganta inflamada e deu uma diminuída no ritmo... eu digo que foi castigo de Santiago por ter nos abandonado!
Saímos à tardinha para passear na cidade e passamos por uma igreja muito bonita e um senhor nos convidou a entrar. Qual não foi nossa surpresa ao perceber que estava tendo um “ofício” e quem cantava eram as monjas enclausuradas, detrás de uma “coisa” de madeira em formato de cocada (rs), acho que o nome é treliça! A igreja, linda e as vozes pareciam de anjos.
Como tínhamos reservado mesa no restaurante do Sr. Diego, quando chegamos estava lotado, mas nossa mesinha estava lá. O problema é que eu não podia olhar para o homem, que é o próprio Mr. Bean, sem rir. Ainda mais que na correria para atender a todos, ele se esqueceu do degrau, tropeçou, esborrachou no chão, voou bandeja, prato pra todo lado... não consegui nem ajudar, de tanto que eu ria, disfarçada atrás do guardanapo.
O Mauricio estava mal humorado, não tinha gostado da sopa, acho que estava mesmo era com raiva de não ter ficado livre de nós, o tombo foi a gota d’água, levantou-se e foi comer em outro lugar. Azar o dele. Nós ficamos, a pobrezinha da esposa do Mr. Bean, D. Maria, explicou que a cozinheira tinha faltado, a Cris disse-lhe umas palavras de incentivo e permanecemos, eu, Cris e Paulo, o baiano. Ao final o Mr. Bean nos serviu uma espécie de licor, só que muito forte, que disse guardar para pessoas especiais (e muito resistentes a alcool também!).
Voltamos para o albergue. Mas confesso, não foi uma boa experiência dormir numa igreja. Passei a noite inteira dormindo e acordando, ouvindo vozes (não sei se daqui ou de lá), parecia que tinha gente andando o tempo todo... sei lá, como não sou católica, podia ser praga (rs)...
Só conseguia rezar para o dia amanhecer logo!

terça-feira, 4 de novembro de 2008

PORQUE QUEM ESTÁ NO LEME NÃO SOU EU...



Minha mãe adorava manacá! Por causa dela também passei a gostar e tenho esse lindo exemplar no meu jardim. Lembrei-me dela não por ter sido "dia dos mortos", sou que nem Fernando Pessoa, acredito que a morte é só uma curva na estrada, morrer é deixar de ser visto; lembrei-me porque ela dizia que uma desgraça nunca vem só, vem sempre acompanhada de outra maior (ou menor, mas sempre incomoda).
Eu tinha tudo planejado: ia tirar os pontos, minha mão ia melhorar, assumiria novamente meu blog e minha caminhada. Na minha cabeça estava tudo tão certinho. Planejado, era só executar.
Daí começaram a aparecer os obstáculos, em forma de pequenos problemas de saúde, nada grave que eu corra o risco de passar desta para outra melhor (ou pior, sei lá os débitos e créditos que acumulei), mas que estão me impedindo de fazer o que planejei, de atualizar o blog, de retomar minha vida, de visitar os amigos, etc.
É um tal de ir a médico, um encaminhar para outro, exames de todo tipo - só falta me virarem do avesso...
É um teste de paciência.
É um teste de aceitação: quem está no leme é Deus, recolho-me à minha insignificância de marujo da vida.
Mas eu volto...
Um grande beijo
"Quando penso que sei todas as respostas vem a vida e muda todas as perguntas."
(L.F.Veríssimo)