segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

CARTA

Catedral de Puebla - México


Meu querido

Há tempos penso em escrever-lhe... tanta coisa acumulada dentro de mim, tanta coisa a contar com a certeza de ser compreendida, tanta coisa... mas, é que passo muito tempo escrevendo longas cartas para ninguém e também, como diz a música, “uns versos, depois rasgo”, daí perdi o ritmo, perdi a maneira, perdi.
Sabe, queria de contar das minhas perdas, mas talvez a pessoa que você é hoje achasse mesquinharia eu falar de perdas uma vez que cremos em reencontro, reencarnação, em vidas passadas. Mas despedir dói (ainda dói).
Contar, quem sabe? da passagem de um livro que me emocionou que dizia: “As lembranças emergem no presente intemporal do amor, no louco espaço onde uma mulher e um homem são tudo para passar imediatamente a outro espaço onde já não há mais nada, onde os direitos terminam, onde a intimidade desaparece para ser guardada a chave no baú das recordações, na arbitrariedade dos amantes onde de um minuto para outro o nada se instala. Por que não conheci você antes...?” (SERRANO, Marcela. O Albergue das Mulheres Tristes) e perguntar o que você acha, com certeza você me falaria de amores, filosofia, mundos paralelos.
Mas queria mesmo saber o que você está lendo, voltar a ler os mesmos livros, escrever nas margens e depois comparar as impressões. Esses dias estava relendo Castañeda e lembrei de você, numa passagem em que Don Juan diz:
“Yo digo que es inútil desperdiciar la vida en un solo camino, sobre todo si ese camino no tiene corazón.
- Pero, ¿cómo sabe usted cuándo no tiene corazón un camino, don Juan?
- Antes de embarcarte en cualquier camino tienes que hacer la pregunta: ¿tiene corazón este camino? Si la respuesta es no, tú mismo lo sabrás, y deberás entonces escoger otro camino.”
Mas no momento certo você se encontrará Don Juan (talvez já o tenha encontrado). Mesmo assim fiquei a perguntar-me: será que naufragamos por haver coração demais em nossos caminhos?
Queria também te contar das viagens que fiz pelo mundo, das coisas que vi, das inúmeras vezes em que sozinha, estive com você, em todos os lugares que sonhamos estar juntos. E não foi triste... foi como se eu visse cada coisa, cada paisagem, através do seu olhar. Foi um grande aprendizado.
Queria te contar que aprendi a ouvir música, por longo tempo, de Kevin Kern a música erudita, em silêncio, deixando que as notas invadam minha alma e me alimentem de som, como você me ensinou, mas sinto saudade de, encostada num portal qualquer, cantar:
“Bem que se quis / Depois de tudo / Ainda ser feliz / Mas já não há / Caminhos prá voltar / E o quê, que a vida fez / Na nossa vida? / O quê, que a gente / Não faz por amor?... / A minha estrada corre / Pro seu mar... “
Sabe, este final de ano não quero me encher de resoluções, nem promessas, nem esperanças... quero apenas saber que escolhi um caminho com coração, mesmo que esse caminho deixasse para trás a parte mais bonita de mim.
Não há mais lugar para pular sete ondas, chupar romã, comer lentilhas ou usar essa ou aquela cor... não espero muito mais da vida, estou satisfeita com o que tenho. Sonhos? Sim, ainda sigo sonhando e buscando realizá-los. Não desisti de viver, desisti sim, de correr atrás do impossível, desisti de sofrer pelo que não tenho, pelos caminhos que não escolhi.
Fiz minhas escolhas e isso me basta. Talvez porque ainda acredite que haverá um dia... um lugar... quem sabe outra encruzilhada?
Se sou feliz?
Devolvo com outra pergunta: Existe alguém verdadeiramente feliz?
Só uma coisa gostaria de ainda saber: como está você? Como tem sido sua vida? Continua crendo e buscando o amor em outras bocas e outros corpos?
Conseguiu enfim apagar-me da sua memória?
Se conseguiu, poderia ensinar-me?
Hoje e sempre,
Eternamente

Leda
(este post eu dedico a Dauri Batisti, ele sabe porque...)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

INTERLÚDIO - NATAL


PORQUE É TEMPO DE REFLETIR

Cruz - Praça do Papa - Vitória/ES


Queridos Amigos e a todos que aqui passarem

Mais uma vez é chegado o Natal.
É um tempo em que o mundo se enche de luz para comemorar o aniversário de Jesus.
Tempo de encerrar um ciclo e iniciar outro: o ano de 2008 está chegando ao fim e 2009 se abre com novas esperanças e expectativas.
Tempo de pararmos para pensar sobre o que de fato fizemos neste ano que se encerra e enchermo-nos de bons propósitos para o ano vindouro.
Tempo de renovação.
De efetuarmos um balanço de nossas vidas, de encerrar velhas pendências, de resgatar amizades e contatos que foram ficando para trás, de verificar o quanto pudemos progredir e o quanto deixamos de fazê-lo.
Tempo de pensarmos que dar é mais importante que receber, que este é o verdadeiro sentido da caridade.
Entretanto, uma pergunta paira no ar: por que só em dezembro fazemos isso.
Portanto, o que eu desejo a todos é que procuremos viver cada dia do ano que se inicia como se fosse dia de Natal. Como se fosse tempo de reconciliação, perdão, paciência, resgate, amor.
Eu creio que um dia chegará em que todos os dias serão Natal!
Por enquanto, desejo a todos um Natal abençoado, repleto de encontros verdadeiros. Que o aniversariante não seja esquecido!
Que o ano de 2009 traga a todos nós a vontade de aprender, de crescer e de realizar nossos sonhos!
Com todo meu carinho
Grande abraço,
Kátia

domingo, 14 de dezembro de 2008

O CEBREIRO

APRENDENDO SOBRE LIMITES

Marco de subida O Cebreiro


Parêntesis 1: Este post vou começar no aqui e agora. No Caminho que percorro ao escrever essas memórias.
O Dauri (essapalavra) me perguntou qual era minha experiência espiritual de refazer o Caminho pelas palavras e eu me surpreendi com a pergunta porque não tinha parado para pensar sobre isso. Não havia pensado porque, depois de tanto tempo, de tantos pedidos, inclusive do Mauricio que eu amo de paixão, eu tenha esperado tanto para só agora ter resolvido escrever. É certo que, assim como rio nas partes engraçadas, às vezes uma lágrima furtiva vem de mansinho quando narro alguns momentos, como esse que estou para escrever agora... mas espiritualmente, sinceramente, não tinha pensado.
Então parei para refletir... por isso minha ausência... porque doeu... e ainda dói. Dói perceber que ao longo dos anos desperdicei muitas lições que aprendi no Caminho, dói a saudade daqueles que partiram para outro mundo como a Maria do Carmo e o Jose Miguel (pelo menos que eu tenha conhecimento), dói a saudade dos que partiram neste mesmo mundo e nunca mais vi, dói a distância do Mauricio, mais que amigo, irmão no mais verdadeiro sentido que essa palavra possa representar, dói, apesar de vivermos na mesma cidade, passar tanto tempo sem ver a Cris... são tantas as dores...
Mas nem tudo é dor. Hoje eu sou uma pessoa melhor, espiritualmente, me sinto mais próxima dos ensinamentos de Jesus e busco aplicá-los no meu dia a dia, e isso eu aprendi, em grande parte, naquelas trilhas.
Reviver esse percurso é relembrar o “Amai-vos uns aos outros” que Ele ensinou.
Isso eu acho que tenho feito!
Talvez no fundo eu esteja mesmo é me preparando para voltar... acho que é tempo de voltar, de ver tudo com outros olhos, viver novas experiências, aprender novas lições... mais uma vez me despir da “civilidade” e voltar a ser Peregrina. Quem sabe?

Trilha O Cebreiro

Pois bem, na noite anterior a Cris havia dito que queria sair cedinho (todos nós temíamos a subida d'O Cebreiro) mas eu não estava conseguindo dormir, era dor demais, então, pela manhãzinha, quando o cansaço falava mais alto, era que conseguia adormecer, às vezes de pura exaustão, então eu disse que não sairia cedo, que iria na hora que acordasse. Acho que o Mauricio disse que ia comigo por pura piedade, embora jamais ele tenha confessado isso.

Parêntesis 2: O Cebreiro é a porta da Galícia, ou “Las puertas del cielo” como diz o guia. È uma montanha de 1.300 m de altitude, que se sobre de uma só “tirada”!. O lugar é lindo, porém assustador. A gente não sabe o que vai encontrar pela frente, pois tudo vai depender do clima, pode ser um dia de neblina, onde não se vê nada, ou um dia de sol, onde se crê estar mesmo chegando mais perto de Deus. É uma trilha minúscula, serpenteando a montanha. Nós demos sorte, o dia estava magnífico.


Trilha serpenteada ficando para trás

A Cris se foi e eu e Mauricio fomos deixar minha mochila no ponto combinado para ser levada de carro. Já seria uma grande proeza conseguir chegar lá em cima, carregar a mochila seria estupidez da minha parte, uma vez que estava no limite das minhas forças.
É lindo! Muito verde, pastores pelo caminho, pequeninos povoados Ruitelán, Las Herrerías, La Faba e Laguna.
Fomos subindo devagar, fotografando o que ficava para trás.
Mauricio foi todo paciência. Seguiu no meu ritmo, sem reclamar, incentivando-me e acredito que forças maiores me acompanharam, pois consegui chegar até o pico, sem sofrer muito.

O Cebreiro - pueblo

O Cebreiro é lindo! São (ou eram) 12 casas de pedra, com floreiras nas janelas, um bar-restaurante, o albergue acolhedor e a Igreja pré-românica Santa Maria La Real, toda em pedras. O Cebreiro é considerado um dos pioneiros na existência de albergues para peregrinos e, como não poderia deixar de ser, também tem sua história de milagre.

Igreja Santa Maria La Real


Parêntesis 3: Conta-se que no ano de 1.300, um pastor que vivia em Barxamaior, apesar de uma grande tempestade, subiu a montanha para assistir à missa. Porém o sacerdote, vendo apenas uma pessoa na igreja, não se sentiu muito incentivado, e não se empenhou no ofício, momento em que a hóstia se converteu em carne e o vinho em sangue. O cálice do milagre, obra do século XII, encontra-se ainda na igrejinha. Contam também, que Isabel, a Católica, quando de regresso de sua peregrinação em 1488, resolveu levar o cálice para um lugar mais seguro, porém os cavalos se negaram a passar além de Pereje (lugarejo próximo). Tomando isso como sinal divino, o cálice, que eles chamam de Santo Graal, foi devolvido e está lá, para quem quiser ver.


Igreja Santa Maria La Real - Santo Graal

Ao chegarmos a Cris já havia pego minha mochila e fomos para o albergue. Fizemos nossas tarefas corriqueiras e depois saímos... cada qual pegou seu rumo. Eu resolvi ir para a igreja.
Logo ao entrar ouvem-se cantos gregorianos que tocam ininterruptamente. Creio que foi a igreja mais simples que visitei, mas a mais linda. Pequenina, pedras aparentes, bancos de madeira, apenas um crucifixo, uma janelinha de vidro onde entram raios de sol e um nicho, onde estão o cálice e outros elementos de ofício. Ali eu sentei e conversei com Deus.
Chorei muito. Sentia-me injustiçada ao ver tanta gente fazendo o caminho de farra e não acontecer nada e eu, que tinha verdadeiramente o propósito de me encontrar e assim tornar-me uma pessoa melhor, mais digna, passar por tanta dificuldade, tanta dor.
Quanto mais eu chorava mais calma eu ficava, era como se as lágrimas lavassem minha alma e levassem com elas meu sofrimento. Era como se Deus me respondesse lembrando-me de todas as vezes em que quis ter as rédeas da vida nas minhas mãos crendo que o poder estava no meu querer, desprezando aqueles que não seguiam adiante julgando-os fracos.
Deus estava me dando uma grande oportunidade para rever meus conceitos, preconceitos e posturas.

Igreja Santa Maria La Real - Crucifixo

Só sei que consegui me acalmar bastante, mas essa leitura eu só vim fazer tempos depois... como também a leitura de que Deus estava me ensinando sobre a diferença entre dor e sofrimento.
Que a dor a gente não pode evitar. A dor física, a dor de uma perda, as dores impostas pela vida. Mas o sofrimento é uma escolha. Sofrer é alimentar a dor. Eu vinha alimentando dores muito tempo... era hora de parar de sofrer...
Mas eu ainda teria que passar por um longo aprendizado.

O Cebreiro - entardecer visto do albergue

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

DE CACABELOS A VEGA DE VALCARCE

APRENDENDO A LIDAR COM AS DIFICULDADES
(mais...)

Villafranca Del Bierzo

Como no dia anterior nós (por minha causa) não havíamos conseguido chegar a Villafranca Del Bierzo, decidimos que não iríamos até O Cebreiro, pois seria uma caminhada longa e difícil demais. Combinamos seguir até Vega de Valcarce, o que daria 25 km naquele dia e onde descansaríamos para enfrentar o terror de subir O Cebreiro.
Orlando e Micheline foram-se cedo. Mauricio estava enrolado com o seu “Inconsciente”, daí eu e a Cris decidimos ir na frente. Logo na saída meu calcanhar começou doer, apesar dos remédios. Paramos para eu colar Compeed (é um adesivo que se aquece com as mãos e se cola para evitar atrito na área sensível) e nisso Mauricio nos alcançou.
Esta trilha é escolher entre o mal e o pior... são mais de 17 km que a gente anda no acostamento de uma rodovia federal, super movimentada, caminhões imensos cujo deslocamento de ar fazia-nos perder o equilíbrio. Para completar a estrada estava em obras, então era poeira até não poder mais! Era uma verdadeira tentativa de suicídio.

"Trilha" ou "Caminho" ou "Tentativa de Suicídio"

Com muito custo chegamos a Villafranca Del Bierzo, terra de Jesus Jato, personagem (real) de “O Diário de um Mago” (e todos os livros sobre o Caminho). Tido por Paulo Coelho como Druida, no livro ele nos conta o místico ritual de preparação da Queimada, bebida alcoólica de origem celta, feita à base de um destilado de frutas e que tem como função afastar maus espíritos, entre outras histórias.

Villafranca Del Bierzo

Jesus Jato, há mais de trinta anos recebe peregrinos do Caminho em sua própria casa transformada em refúgio. Tido como bruxo, as pessoas da aldeia incendiaram o local, porém ele e sua esposa, MariCarmen, não se deixaram intimidar, recomeçaram do nada. O local passou a chamar-se Ave Fênix, porque renasceria das cinzas.

Refúgio Ave Fênix - Na placa: "Bienvenido al Hospital Ave Fenix, Un Refugio por amor, si tu ánimo es optimista, bien recibido serás, si quieres colavorar, todos te lo agradecerán. Que la luz de las estrellas, refleje tu caminar, y que la luz de Cristo, sea tu camino y su verdad. Ultreia"

Eu, que não sou nem um pouquinho mística (rs), na minha ilusão achava que estando na presença de Jato e, sendo ele um Druida, iria amenizar minhas dores...
Quando chegamos lá ele estava super atarefado – é um homem do campo, que lida com as tarefas do plantar e do colher e acolher – mas mesmo assim deu-nos atenção e, não sei se atraído pelo meu olhar que emanava dor, pedido de socorro, ele se aproximou de mim e me disse que usasse no meu pé uma determinada erva. Disse também que nada que acontece no Caminho é por obra do acaso, que tem um objetivo específico, que eu buscasse naqueles últimos acontecimentos a lição que faltava aprender.


Albergue Ave Fênix de Jesus Jato

Parêntesis 1: Vou confessar, saí decepcionada! Pois queria que ele, com seus poderes mágicos, me curasse... Queria que ele impusesse suas mãos calosas sobre meus pés e fizesse desaparecer toda a dor. Naquele momento não imaginava que a dor do corpo, muitas vezes, vem para que nos curemos de uma dor muito maior, que carregamos na alma... Mas como diz o Pequeno Príncipe: Eu era jovem demais para entender... (e quando falo em juventude não falo em idade...)

Saímos de lá, eu mancando e voltamos para a maldita estrada.
O Guia dizia que depois de Villafranca teria uma rota alternativa que, embora aumentasse o caminho em dois quilômetros e fosse mais íngreme, nos livraria da “via rápida”, o problema é que por mais que procurássemos não encontrávamos onde entrar para este desvio... chegamos até a ver dois peregrinos num monte próximo, mas não sabíamos como chegar até lá. Desistimos e seguimos nossa tentativa de suicídio.
A coisa boa deste dia foi que encontramos um albergue em Pereje. Sensacional! Tinha camas e lençóis! Um campo verde... foi difícil deixar aquele lugar e retomar a estrada.
Passamos por Trabadelo, La Portela, Ambasmestas até, enfim, chegarmos a Vega de Valcarce.
Eu sentia tanta dor que nem uma foto eu tirei desses lugares...
No albergue já estavam Ângeles e Rosa e ficamos muito felizes de nos reencontrarmos.

Parêntesis 2: É sempre assim, a gente se despede de um companheiro, todas as manhãs, sem saber se vamos voltar a vê-lo ou não. É como se não existisse futuro. Vive-se o dia de hoje e entrega às forças maiores os acontecimentos de nossa vida. Se estiver escrito, nos reencontraremos, se não, ficará para sempre a lembrança.

Vega de Valcarce - Albergue

Rosa estava com o tornozelo enfaixado e tinha chegado a Valcarce de carro. Tomamos banho e em companhia da Cris saímos em busca de uma farmácia, pois ela havia examinado meu pé e não tinha gostado nada do que tinha visto. A farmacêutica examinou-me e comprovou que uma das bolhas estava em adiantado processo de infecção, já com secreção, receitando-me antibióticos oral e local. Eu entrei em pânico. Como seguir o caminho naquelas condições? Chorei bastante, senti-me injustiçada e outras coisitas mais.
Resolvemos, então, mandar nossas mochilas de carro até O Cebreiro (ainda hoje acho que a Cris só mandou a dela em solidariedade, para que eu não me sentisse pior). A Cris sugeriu que eu seguisse de carro com a Rosa, mas eu não podia aceitar.
A minha cabeça era um turbilhão.
Embora Cris e Mauricio (e todos os demais) tenham se mostrado muito solidários eu não conseguia aceitar o que estava acontecendo.
Chorei até conciliar no sono, sentindo-me a pior das criaturas...

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

E VAMOS NÓS!


TRECHO MOLINASECA – CACABELOS

Molinaseca - ponte medival


Seriam quase 30 Km. Mas dizia o guia que era uma caminhada tranqüila... ainda bem, porque meus pés, principalmente o direito, piorava a cada dia, não sabia o que estava acontecendo, era dor, dor e dor... andar exigia de mim um grande sacrifício. Ainda bem que a Cris havia levado uns comprimidos (que não lembro o nome) e eu tomava pela manhã, mas eram poucos, eu tinha que racionar, então eram umas quatro horas de alívio (médio), depois disso, vou dizer, era duro!
Mas eu não encarava aquilo como penitência, ou castigo, ou pagamento de pecados passados ou futuros, tudo aquilo que as Igrejas costumam pregar... simplesmente era fruto da escolha que eu fiz. Eu escolhi fazer o Caminho. Escolhi marcar, ali, o encontro comigo mesma. Tudo foi escolha minha! Então não havia aquela de que “eu tenho”, “eu preciso”... eu simplesmente queria... era a realização de um sonho. Uns sonham em comprar um carro importado, outros em passar uma semana num resort, outros em ir jogar em Las Vegas. Respeito cada escolha. Eu havia feito a minha.

Parêntesis 1: É incrível como tem pessoas que não compreendem as escolhas dos outros... Por muito tempo ouvi que eu era louca, que o que fiz era um absurdo e coisas do gênero. Ontem meu sobrinho me disse que está programando escalar o Aconcágua, mas que era segredo, porque seus pais não compreendem, e eu lhe disse: Meu querido, cerca-te de todos os cuidados possíveis, escolha os melhores equipamentos e guias, tenha certeza de sua segurança e vá em frente. Realize seu sonho enquanto tem idade e saúde para isso, senão, corre o risco de passar o resto da vida infeliz pelo não realizado.
Eu jamais escalaria o Aconcágua ou qualquer outra montanha, mas respeito as escolhas alheias, mesmo que não as compreenda (o que não é o caso)!

Saída de Molinaseca

Pois bem, fomos até Ponferrada, última cidade “grande” até Santiago... Tomamos nosso café, fomos ao banco, fizemos essas coisas burocráticas por precaução já que não sabíamos o que viria adiante além do terror de O Cebreiro. A Cris resolveu comprar um tênis. Nós rimos bastante porque ela disse que a sapatilha Azaléia dela estava com a sola tão fina que era capaz de ler em braile com os pés...
Passamos por Columbrianos, Fuentes Nuevas, Camponanaraya e enfim chegamos a Cacabelos.
Já havia terminado o “meu prazo de validade”... o remédio não mais fazia efeito. Não dava para seguir adiante, embora nosso projeto inicial seria ir até Villafranca Del Bierzo, terra de Jesus Jato...
Orlando e Micheline já estavam no albergue e nos acolheram com o maior carinho, resolvemos ficar. Acho que Mauricio e Cris ficaram por solidariedade, embora, em nenhum momento, tenham demonstrado desapontamento por não seguirem adiante (eles não imaginam o quanto sou grata por eles não me deixarem sentir como um fardo em seus caminhos...)

Ponferrada - Castillo de Temples


Parêntesis 2: Acho que a verdadeira amizade se oculta nos menores gestos. Grandes ações todos somos capazes. Fazemos e depois seguimos nosso rumo. Mas seguir dia-a-dia acompanhando o passo do outro, no ritmo do outro porque ele não suporta outro ritmo, demonstra um carinho e amor que vão além das palavras. Embora Mauricio e Cris saibam o quanto os amo e admiro, talvez não saibam a gratidão que lhes devoto por haverem permanecido comigo... e era só o começo!

O Albergue de Cacabelos tem compartimento com seis vagas cada, acomodamo-nos com Orlando e Micheline e logo depois chegou Alonso, que ficou conosco.
Cris estava com a garganta doendo, meio gripada, daí o Mauricio saiu para fazer compras e nós fomos lavar roupa, tomar banho, etc.
Nisso chegou a Amasvinda. E como eu falei anteriormente sobre simpatias e antipatias, a Santa Cris, que ama tudo e todos, sentiu uma antipatia gratuita por ela, desde a primeira vez que nos vimos, e a pobre estava toda estropeada, havia torcido o tornozelo, que estava inchado, doendo muito, então, para se redimir, a Cris fez uma massagem nela.
Descansamos um pouco e depois saímos para comprar nossas provisões do dia seguinte e conhecer um pouquinho da cidade. Encontramos nossos amigos e Orlando disse que faria uma macarronada italiana e que estávamos convidados para jantar com eles.

Cacabelos - Eu, Micheline, Orlando e Cris

Quando estávamos terminando de jantar chegou um brasileiro que se dizia jornalista, muito espaçoso, “entrão”, sem desconfiômetro e chato (nossa! Mas o cara era uma mala mesmo!), que sem ser convidado foi logo sentando, se servindo do macarrão, falando sem parar (só abobrinhas) e fazendo propaganda de si mesmo... Nem um pouco simpático...
Quando ele se foi o Orlando, que é um gentleman, comentou:
- Ainda bem que nem todos brasileiros são iguais!
Tivemos que rir...

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

FONCEBADÓN – O MITO

DE RABANAL DEL CAMINO A MOLINASECA


Rabanal - Foncebadón - Caminho


Amanheceu muito frio. Minhas mãos estavam dormentes... Quando o povo do estábulo acordou, e aí estávamos eu e Maurício, o povo da Casa Grande já estava pronto. A Cris já estava cansada de esperar... perguntou se eu não me importava se ela seguisse na frente com a Graça, uma vez que havíamos combinado passar por Foncebadón juntas, e eu disse que não, que ela podia ir...

Parêntesis 1: Quando vamos para o Caminho em companhia de outra pessoa é igual a um casamento, é no dia-a-dia que a gente vai descobrindo as diferenças. Eu e a Cris descobrimos muitas diferenças, ela gostava de sair bem cedo, eu gosto de dormir até mais tarde, ela prefere o almoço, eu prefiro o jantar, ou seja, cada pessoa tem seu ritmo e a gente ou aprende a respeitar o ritmo do outro ou cria um abismo intransponível. Conhecemos amigas que foram juntas para o Caminho e lá se tornaram inimigas. Não souberam lidar com as diferenças. Eu e a Cris, apesar de tudo, voltamos com nossa amizade fortalecida. É como sempre repito: o amor que nos une foi maior que as diferenças que poderiam separar-nos.

Fizemos um lanche e saímos rumo a Foncebadón...

Foncebadón

Parêntesis 2: Foncebadón é uma cidade tida como abandonada e cheia de histórias e mitos. Paulo Coelho, em seu livro “Diário de um Mago”, primeira leitura para todo peregrino àquela época, narra que ali encontrou o demônio num cão, Legião, e sua luta com ele numa batalha pelo domínio do poder. É comum muitos peregrinos tomarem um desvio e não passarem por dentro de Foncebadón.

Para chegar até Foncebadón temos que atravessar uma cadeia de montanhas bem íngremes, subida difícil, muito frio e o medo pelo desconhecido. Mas não era ali que iríamos “dar para trás”.
Chegamos e logo à entrada tem uma placa que conta a história do lugar, como teve seu papel de destaque na rota, no século XI, como centro de acolhimento aos peregrinos no alto do Monte Irago e como aos poucos, foi sendo abandonada.
Na minha cabeça só ficava martelando a história dos cães, então eu fotografava com um olho e com o outro ficava vigiando. Não vou mentir, estava com medo sim! E eis que de repente, do nada, surgem três ou quatro cães, pelo menos foi o que me pareceu no momento, mas eles tinham um chefe, negro e seus olhos eram amarelos (o Mauricio está aí mesmo para comprovar a história). Eu tremia que nem vara de bambu! Mas sabia que ninguém iria acreditar na nossa história se não tivéssemos uma prova, e os seres parecidos com cães se aproximando, rosnando, eu gritava pro Mauricio:
- Fica quieto, não se mexe, deixa eu fotografar!
Mauricio gritava de volta:
- Tá louca, eu não vou servir de comida para esses demônios.
E o chefe de olhos amarelos, de repente, do nada, parou, encarou-nos, os outros fizeram o mesmo, deu-nos as costas e desapareceu.
A foto ficou uma porcaria! Mas está aí para comprovar.

Foncebadón - O Chefe da Quadrilha


Precisei de um tempinho para minha respiração voltar ao normal...
Seguimos pela Calle Real, paramos junto ao cruzeiro que deve ter muito séculos, observando aquelas ruínas... quanta história devem guardar aquelas pedras!

Foncebadón


Mais à frente vimos uma placa indicando alguma coisa habitada (havia postes e fios de energia, o que significava civilização). Logo no pátio da entrada, no chão, tem um mosaico meio místico, com uns desenhos, parece um cisne, símbolos, etc... era os primórdios do restaurante medieval Gaia, do Henrique... Mais uma vez me lembrei das palavras de Paulo Coelho, que disse que um dia Foncebadón ressurgiria de suas próprias cinzas.
Encontramos com um brasileiro que morava em Portugal, mas não consigo lembrar o nome, e ele nos disse que havia passado a noite ali...
Gente, só se tivesse fumado unzinho... era um salão enorme, ainda em construção, com coisas penduradas, pencas de alho, penas, galhos retorcidos, ramos de folhas, panelas, tudo que vocês possam imaginar... Conhecemos o Henrique, fizemos uma paradinha, recuperamos o fôlego e seguimos adiante, em meio à tristeza e desolação das ruínas contrastando com a exuberância da vegetação...
Logo adiante (uns oito quilômetros) chegamos à Cruz de Hierro, quase no ponto mais alto de todo Caminho, a 1.504 m de altitude. O ritual é, cada peregrino, depositar uma pedra a seus pés (já é uma montanha!) para pedir proteção para a viagem.

Parêntesis 3: É uma cruz simples, sobre um imenso tronco. Há séculos é tido como um lugar místico e se crê que a cruz atual substitui a original instalada por Gaucelmo (fundador de Foncebadón) sobre um altar romano dedicado a Mercúrio, Deus dos Caminhos.

Cumpri o ritual... Eu levei do Brasil quatro pequenas pedras: um quartzo rosa (amor), uma ametista (lilás, harmonia), um ônix (proteção) e uma ágata (fortalecimento). O ônix eu deixei nos Pirineus... Deixava agora o quartzo rosa na Cruz de Hierro.

Cruz de Hierro

Fiz uma pequena oração, tirei fotos e fomos embora. Encontramos com a Cris e a Graça...
Devo reconhecer que eu esperava sentir uma emoção maior. Esperava me emocionar mais ao chegar naquele lugar, mas o lugar não chamou minha alma... Devo ser mesmo diferente da maioria das pessoas...
Como fomos logo embora, elas resolveram ficar. A Cris não deve ter compreendido porque eu não fiquei mais tempo...
Logo adiante ouvimos um sino tocando. Era Tomás, hospitaleiro, que toda vez que se aproxima um peregrino toca seu sino para saudá-lo e para orientar os peregrinos em dias de neblina. Ele mantém um albergue simples, humilde, e está sempre pronto a ajudar quem quer que seja, também acolher a todos para um café e um dedo de prosa.

Manjarín - Refúgio do Tomás


De Manjarín, refúgio de Tomás, lugar que não tem mais nada, seguimos para El Acebo, onde paramos para um lanche rápido.

Manjarín - El Acebo


Daí foi enfrentar mais morros... a subida até que não foi muito difícil, mas a descida... insuportável! Eram pedras soltas, escorregávamos a toda hora, meus pés doíam até não poder mais, não dava nem para apreciar a paisagem, linda, por sinal, tamanha a dor que sentia.
Assim, aos trancos e barrancos, chegamos a Molinaseca.

El Acebo - Molinaseca


O refúgio fica na saída da cidade, o frio já havia passado, muitas pessoas se banhavam no rio que corta a cidade.
Eu só queria saber de um lugar tranqüilo para colocar os pés para cima... e costurar mais bolhas... e chorar mais lágrimas... e descansar para recomeçar no outro dia.

Monumento a um ciclista alemão, morto atropelado, neste trecho do Caminho



segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

DE ASTORGA A RABANAL DEL CAMINO


O PREÇO DE UMA EXPOSIÇÃO


Caminho Murias de Rechivaldo - Santa Catalina de Somoza


Acordamos e a esperança de que o frio iria embora ficou só na esperança mesmo... Não chovia mais, tinha até sol, mas só para enganar os trouxas, porque o vento frio parecia que entrava por entre qualquer frestinha de roupa, que nem desenho animado!
Enquanto tomávamos café e criávamos coragem para enfrentar a trilha, naquela friagem, eu e Mauricio decidimos que iríamos ficar e visitar a exposição. Já era umas nove e meia da manhã, a exposição abria às dez... daí a Cris foi na frente e nós ficamos.
Como prova, eis o ingresso que guardei com todo carinho!

Astorga - Exposição La Edade de Los Hombres

Valeu ter ficado, a exposição reunia obras de milênios, de toda parte do mundo, eu me perdi no meio de tanta coisa bonita, tanta história... foi fantástico!
Encontramos a Maria (de Brasília) e a Hayde (alemã) que também tinham decidido ficar.
Quando saímos já era mais de meio dia. Comemos alguma coisa e tomamos rumo...
O frio parecia que aumentava a cada passo que dávamos.
Passamos por Murias de Rechivaldo, Santa Catalina de Somoza e quando chegamos em El Ganso paramos em um bar famoso entre os peregrinos - Cowboy – e resolvemos tomar alguma coisa para espantar o frio. O termômetro marcava 4º negativos, mas a sensação térmica era de uns 10º. Não lembro se tomei conhaque ou whisky, só sei que se estivesse aqui juro que tomava cachaça! (depois a Cris nos contou que entrou no mesmo bar e o cara estava com tanta preguiça que não quis atendê-la e indicou outro lugar para ela ir...)


El Ganso - Bar "Cowboy"

A gente foi colocando todas as roupas que tínhamos, uma por cima da outra, até capa de chuva colocamos e nada do frio passar... acho que nunca senti tanto frio na vida. A única vantagem foi que meus pés ficaram congelados, daí eu não sentia tanto a dor das bolhas, que aumentava a cada dia.
À nossa frente tinha uma grande montanha com a parte de cima esbranquiçada... só passava na minha cabeça: Será que aquele é O Cebreiro? Terror dos peregrinos... só de pensar dava um frio na barriga.

Existe um Mauricio embaixo disto tudo, eu juro!

Chegamos a Rabanal Del Camino à tarde. Grande parte de nossos amigos haviam chegado mais cedo e o Orlando havia feito uma macarronada para todos e já haviam programado um grande jantar de confraternização e é claro que nossa amiga-irmã Cris não esqueceu de incluir-nos na lista.
Como chegamos tarde não havia mais lugar na casa principal do albergue, só haviam vagas no que antigamente havia sido um estábulo! Para mim tudo bem! Se Jesus nasceu numa gruta, eu, que não sou nada em comparação a ele, estábulo longe do vento frio me soou como hotel cinco estrelas.

Chegada a Rabanal... o almoço já havia acabado!

Arrumamos nossas coisas, tomamos banho e eu e Cris fomos ajudar a Ângeles a preparar o jantar: Salada mista, tortilla e salada de frutas de sobremesa... regado a vinho em garrafa pet! Estávamos arrumando tudo, tinha até flores na mesa, cortesia da nossa hospitaleira Célia, portuguesa, quando vieram avisar que a missa estava começando. Quase todos foram, mas eu optei em ficar...

Rosa e Ângeles - mais que mãe e filha... aprendi muito com elas

Quando voltaram já estávamos com a mesa posta!
Foi um dos momentos que trago guardado no coração, num lugarzinho muito especial!
Estávamos reunidos: eu, Cris, Mauricio, Ângeles, Rosa, Kelinda, Hayde, Jose Miguel, Orlando, Micheline, Odulia, Pedro Grandão, Jean e Graça.

Família Peregrina

Muito vinho! Muitos brindes! E enquanto comíamos íamos contando as coisas engraçadas que haviam acontecido com cada um durante a caminhada. Rimos bastante falando das “tentações”, das caronas oferecidas e encaradas por nós como testes à nossa perseverança, e então, Jean, francês, na faixa dos seus cinqüenta anos, que normalmente era caladão, contou que naquele dia havia caído e machucado a mão e o rosto, nisto parou um carro com duas jovens “lindíssimas”, na linguagem dele, e insistiam para que ele fosse com elas que elas cuidariam dele. Ele, fiel ao princípio do caminho, não aceitou o convite. Depois, durante o jantar, ficou se lamuriando: Quando na vida vai me aparecer outra oportunidade desta? Nunca! E se foi Santiago quem mandou e eu não ouvi? ... a cada reclamação era um coro de gargalhadas!

Orlando, Jose Miguel e Pedro Grandão, para sempre em meu coração

Fomos dormir felizes e leves (também, depois de tanto vinho!)
Foi o dia que mais me senti “em família” durante a jornada...
Vocês devem estar se perguntando o preço da exposição: pois eu vos digo... perdemos o almoço do Orlando, o estábulo tinha frestas e o vento fazia barulho que nem filme de terror! Foi alto o preço, mas valeu a pena.

Micheline, Hayde, Jean, Cris, Mauricio, Eu, Kelinda, Pedro - amigos além do tempo e da distância